Extrato de Alexandre Costa, Thánatos. Porto Alegre: EIPUCRS, 1999
Se a morte fática, fenômeno último da finalidade do devir, estabelece a finitude temporal do ente e também sua finitude espacial, em função do seu desaparecimento irreversível, a morte enquanto alteridade e negação determina um outro modo de finitude espacial: é morte para um ente tudo aquilo que nele esbarra em diferença. Poder-se-ia dizer que essa finitude espacial define e estabelece o êthos (ήθος) específico de cada coisa, o espaço em que o ente vive e vigora com suas propriedades, seu comportamento e suas características próprias1. Tudo o mais que estiver fora desse círculo já não é mais o ente, escapa ao seu êthos e pertence à sua alteridade.
No Fragmento 94 pode-se encontrar uma menção a este círculo delimitado pelo próprio ente: “O sol não excederá as medidas (μετρa-métra)·, se o fizer, as Eríneas, servas da justiça, hão de o encontrar”. Que medidas podería o sol ultrapassar senão as suas próprias? O sol possui medidas, existe um métron a que obedece, há um espaço que ocupa — o espaço de sua vida, vida que faz do sol, o sol. O sol é sol pois encontra a liberdade de sê-lo na clausura do métron, do êthos, senão não seria sol, vivería a morte de sol e não a morte dos outros. Fora dessas medidas, fora desse espaço, o sol não é sol, não há mais sol, está morto, ele some e, talvez por sumir, terão as Eríneas a tarefa de encontrá-lo, já que se dissiparia ao exceder seu métron. A medida é o limite, o desenho da circunferência — o ente vive a sua medida, o seu métron.
Para além da medida, a alteridade e a negação — thánatos. O círculo definido pelo comportamento vital do ente determina sua entidade. A entidade mesma jamais se esgota; o ente, entretanto, tem que morrer. É como se esse círculo salvaguardasse sempre o ente como possibilidade; contudo, o ente, tomado em sua singularidade, está submetido à finalidade do devir — à morte fática. Tome-se uma vez mais o homem como exemplo: o homem, indivíduo, morre, é mortal; mas a entidade do homem, a possibilidade-homem, não se esgota, não finda, não morre. O homem é mortal em sua individualidade ou singularidade e imortal em sua entidade, como bem assevera o Fragmento 62 ao definir os homens como “mortais imortais”. Assim, a presença de thánatos e o advento da sua faticidade engendram, respectivamente, a finitude espacial e a finitude temporal2 do ente homem, mas jamais a finitude de sua entidade, de sua humanidade. (p. 82-83)
O que se pretende ao dizer, portanto, que há outro significado do termo “morte” para o homem, é que existe mais um modo de não ser homem para além daquele que representa o esvair-se de sua zoé. Esse outro modo de “não ser mais homem”, não sendo a quebra do limite de “vida vital”, vem a ser a quebra do limite de sua humanidade. A quebra do limite de humanidade do homem confere a thánatos um caráter deficiente ou decadente, e proporciona a bíos uma realidade éthica. A humanidade do homem circunscreve o seu êthos, e a possibilidade de excedê-la indicaria, consequentemente, a surpreendente possibilidade que o homem teria de pular para fora de seu próprio êthos. Nesse pulo ou salto desfigurar-se-ia sua humanidade, o desumano só o homem pode cometer. (p. 115)
O termo “ήθος” aparece duas vezes ao longo dos fragmentos. No de número 78 refere-se aos homens e aos deuses e no de número 119 reporta-se unicamente ao homem. Assim, não há no universo dos fragmentos nenhuma menção quanto a todas as coisas possuírem um êthos, sendo sua indicação, portanto, uma inferência e uma possibilidade do pensamento. ↩
É óbvio que o que se tem denominado como “finitude temporal” guarda também um caráter espacial, como já afirmado, uma vez que a morte fática propicia o desaparecimento do ente. ↩