díkê: compensação, processos legais, justiça
1. Tal como se passa com a maioria dos termos éticos gregos, a dike teve uma história bastante complexa antes de ser incorporada na problemática da filosofia. Desde o tempo de Homero, a dike tinha incorporado nela a transgressão de certos limites, provavelmente os que eram ditados, em primeira instância, pela estrutura de classes da sociedade, e o pagamento de uma compensação por esta transgressão. Com o declínio de uma consciência de classe aristocrática a dike começou a ser considerada como algo universal na sociedade, aplicável a todos os cidadãos de igual modo, e garantida pelo próprio Zeus. Os limites dentro dos quais a nova dike era operante eram agora definidos pela lei escrita (nomos), e um novo termo abstrato dikaiosyne, «rectidão», «justiça», passou a ser usado para descrever a qualidade moral de um homem que observava os limites da lei e por isso era «justo» (dikaios).
2. O primeiro uso da dike num contexto filosófico ocorre no único fragmento existente de Anaximandro (Diels 12B1) onde se requer dos elementos (stoicheia), que são forças naturalmente opostas (ver enantia), que façam uma reparação (dike) uns aos outros pela sua mútua transgressão no processo da genesis–phthora. Os limites que aqui são violados não são os de uma sociedade humana mas os da ordem implícita no mundo visto como um kosmos, isto numa era em que a descontinuidade entre o mundo físico e a vida humana ainda não havia surgido.
Nota-se uma correção em Heráclito (frg. 80): a luta entre os elementos não é, como Anaximandro queria, uma espécie de injustiça que exige compensação, mas a ordem normal das coisas, a tensão dos opostos que é a realidade da existência.
3. Embora os fragmentos de Demócrito traiam um certo interesse pelo comportamento ético em geral e pela justiça em particular (ver frgs. 45, 174), isto é mais o interesse ético de um filósofo do que uma tentativa de construir uma ética filosófica. O ímpeto para uma tal tentativa residia nos ataques dos sofistas às bases da conduta, argumentando que elas estavam ligadas a uma lei relativa e arbitrária (ver nomos). Por isso a noção de dike foi arrastada para a controvérsia em torno de nomos vs. physis e resulta numa série de posições dos sofistas que descreveram a justiça como consistindo apenas na obediência às leis arbitrárias do estado, os instrumentos através dos quais os poderosos da sociedade procuravam conservar a sua posição: assim Arquelau (Diels. 60A1), Antifonte (Diels 87B44), e as atitudes defendidas por Calicles no Górgias de Platão (483a-484a) e Trasímaco no livro I da República (338c).
4. A resposta socrática a estas posições pode, com certeza, ser considerada simplesmente como um aperfeiçoamento do seu remeter geral das virtudes (incluindo especificamente a dikaiosyne; ver Aristóteles, Eth. Eud. I, 1216b) para o reino das definições permanentes cognitivamente compreendidas (ver arete); mas além disso há a defesa apaixonada da justiça e da lei como um contrato social inviolável no Críton. A resposta do próprio Platão aos antagonistas de Sócrates pode encontrar-se na República II-X, e está incorporada numa investigação da justiça tal como existe no escalão maior da polis (Republica 369a), donde emerge como uma espécie de tendência cooperativa para fazer o trabalho de cada qual (ver 433e, 443b).
5. Isto não corresponde à argumentação de Calicles de que os injustos parecem sempre tirar o melhor partido; os maus, de fato, prosperam. Platão não dá grandes garantias acerca do destino dos justos nesta vida — embora ele tenha a certeza de que os deuses os não esquecerão (Republica 613a-b; comparar Leis X, 899c-900b)— mas é na vida futura que a justiça recebe a sua recompensa suprema, tal como é descrito em termos ardentes no «Mito de Er» in República X.
6. A parte em que Aristóteles trata mais largamente da justiça ocorre na Ethica Nichomacos V onde ela é dividida em: a) «distributiva», i. e., tratando da divisão dos bens, das honras, etc. entre aqueles que participam do sistema político e b) «corretiva», i. e., reguladora das iniquidades quer nas transações quer nos crimes (1130b-1131a). Nos dois casos a justiça é uma espécie de proporção (analogia), e, por isso, também pode ser assimilada à doutrina do «meio» (ver meson). Aristóteles é firme ao rejeitar a argumentação sofistica de que aquilo que é justo é apenas uma questão de convenção: há pelo menos algumas atividades que são justas por natureza (1134b). Finalmente (1137a-b) ele introduz a noção do equitativo ou reto (epieikeia) que tempera as exigências legais da justiça, «o que teria dito o legista se estivesse presente» (confrontar Platão, Polit. 294a-295e).
7. Para os estoicos a dikaiosyne é uma das quatro virtudes cardeais (SVF I, 190), definida por Crisipo como «a ciência de distribuir o que é devido a cada um» (SVF III, 262), e baseada na natureza e não na convenção (D. L. VII, 128). Carnéades, o Cóptico, regressou porém à argumentação dos sofistas de que a lei é uma convenção estabelecida pelos homens em bases estritamente utilitárias, posição que ele pode ilustrar pelos conselhos em conflito da prudência e da justiça (Cícero, De republica in, 11, 18-19; Lactâncio, Instit. V, 16, 3-6). Ver arete, nomos. (Termos Filosóficos Gregos, F. E. Peters)