Gazolla de Andrade: Dualismo platônico

Excertos de Rachel Gazolla de Andrade, PLATÃO: O COSMO, O HOMEM E A CIDADE

Já nas primeiras linhas do Timeu, Platão institui um dualismo de princípios (o ser que é sempre e o ser que devêm), ao mesmo tempo em que uma espécie de monismo parece emergir através da apresentação de uma relação Modelo-cópia que serve como ponto de partida ao artífice que molda, de modo belo e bom, o cosmo. Diz ele:

“…O mundo foi feito em conformidade com aquilo que é objeto de intelecção e de reflexão e idêntico” (29a).

Há um dualismo de princípios e um monismo argumentativo? Um pouco mais adiante (48a), pelo conceito de Necessidade, um outro tipo de dualismo aparece: o dualismo de ordens, da ordem inteligível e da ordem da Necessidade que Joseph Moreau chama de Sensível. Esse intérprete considera que o início do Timeu apresenta um certo artificialismo, pois Platão se vê obrigado, para explicar a gênese do universo físico, “…a fazer apelo a um outro postulado, de colocar uma antítese do ser absoluto, um equivalente ao não-ser, e de fazer ressaltar a constituição deste universo do concurso de dois princípios. Moreau lê os dois princípios dessa operação como sendo o Inteligível e o Sensível. No entanto, apesar dessa leitura operacionalizante do Timeu ser interessante, não nos parece clara tal dualidade. A rigor, teríamos de um lado as ideias, de outro a matéria sensível, mas a “massa desordenada” é uma terceira realidade que Moreau aponta como embaraçante à compreensão. Nessa perspectiva, é preciso esclarecer a lógica do discurso platônico quanto à apresentação de uma espécie de “causa errante” (tés planôménês eídos aitías) (48b), algo existente antes do nascimento do céu, isto é, antes da Alma e Corpo cósmicos. No que respeita à alma, ela não participa da massa desordenada, nem é o espírito que nela se enraíza.

Tentemos aprofundar tais questões a partir da afirmação de parte dos intérpretes sobre o dualismo platônico e a vinculação desses princípios aos valores Bem e Mal. Na interpretação de Simone Pétrement, “…para que um dualismo seja fortemente acentuado, é preciso que os dois princípios sejam colocados em relação, um com o Bem e outro com o Mal. Ora, eles o são, segundo Aristóteles, em Platão e em todos os platônicos, à exceção de Espeusipo.” Realmente, Aristóteles afirma a respeito que: “…Todos os filósofos platônicos reconhecem os dois princípios universais como dois contrários, tanto para as substâncias imóveis, quanto para os seres naturais.” E segue noticiando: “…Alguns filósofos (platônicos) tomam precisamente um dos contrários por matéria. Uns ao Uno como ao Igual opõem o Desigual, ao qual dão a natureza do Múltiplo; outros ao Uno opõem a própria Multiplicidade.” E reafirma na física que:

“…Sendo dado, com efeito, um termo divino, bom e desejável, há, dizemos, de um lado algo que lhe é contrário.”

Se aceitarmos a afirmação de Pétrement e as notícias de Aristóteles, o dualismo platônico é claro, mas a possível oposição Matéria-como-Mal e o Espírito-como-Bem, não é conclusiva nessas notícias. A.J. Festugière, por sua vez, afirma que o Mal está, ou diretamente relacionado à matéria, ou ao devir incessante. Por quê? A “resistência da matéria”, diz ele “…é um limite ao Bem, apesar de ser condição indispensável para que o Bem, no concreto, exista” . Fica difícil, no entanto, entender como o veículo para o Bem possa ser o próprio limite para ele. Festugière constata, ainda, que “…o mal humano tem como causa última a união da alma imortal a um corpo mortal…”.

Noções importantes e difíceis são introduzidas para fundar o dualismo platônico: “matéria”, “sensível”, “corpo”. Sem sua compreensão, não se pode aceitar as bases dualistas do filósofo. O corpo, por exemplo, é lido como matéria e lugar do Mal, sem que a “união” das substâncias diferentes que o compõem seja aprofundada. Não sabemos, por ora, o que é matéria para Platão e se é sinônimo de corpóreo. Parece que não. Ms Leis, a chamada “alma má” é aquela que tem o movimento desordenado e seria nessa espécie de alma, portanto, que o Mal ficaria acomodado, e não no corpóreo, a não ser que se possa entender a matéria e/ou corpóreo, conforme leem alguns intérpretes, enquanto desordem. A desordem, signo do Mal na alma (e não da alma), não tem no texto platônico sinonímia com a matéria, ao menos não claramente, mesmo porque a alma é desprovida de materialidade. Em função de tais dificuldades, é preciso ver mais de perto o dualismo platônico, quer de princípios, quer de ordens, em função das suas consequências para a alma como ser intermediário. Lembremos o conselho platônico no Banquete, no sentido de não abraçar os extremos contrários e que nos serve nesse momento. Sócrates, espantado com o início do discurso de Diotima sobre o belo referido ao amor, pergunta-lhe:

“- Que dizes, Diotima? É feio, então, o amor, e mau?

– Não vais te calar? Acaso pensas que o que não é belo é forçoso que seja feio?” (201e).