Eliade: Escatologia de Orfeu

A nova escatologia.

No que concerne à escatologia “órfica”, as suas linhas gerais podem ser reconstituídas com base em certas referências de Platão, Empédocles e Píndaro. Depois da morte, a alma dirige-se para o Hades. Segundo o Fédon (108 a) e o Górgias (524 a), o caminho “não é nem único nem simples, vários são os desvios e numerosos os obstáculos”. A Republica (614 c-d) esclarece que é permitido ao justo tomar a estrada à direita, ao passo que os maus são enviados para a esquerda. Deparam-se indicações análogas em versos inscritos sobre as folhas de ouro encontradas nas sepulturas da Itália meridional e de Creta, e que datam pelo menos do século V. “Bem-vindo sejas tu que viajas pela estrada da direita rumo às campinas sagradas e ao bosque de Perséfone.” O texto contém indicações precisas: “A esquerda da morada de Hades, encontrarás uma fonte ao lado da qual se ergue um cipreste branco; dessa fonte não te aproximes demasiado. Encontrarás, porém, outra fonte: do lago de Memória (Mnemósine) jorra a água fresca e há guardas postados de sentinela. Dize-lhes: ‘Sou o filho da Terra e do Céu estrelado, bem o sabeis; mas estou seco de sede e sinto-me morrer. Dai-me sem demora a água fresca que emana do lago de Memória’. E os guardas prontamente te farão beber da fonte sagrada, e depois disso reinarás entre os outros heróis.”1

No mito de Er, narra Platão que todas as almas destinadas a reencarnar são obrigadas a beber da fonte do Lete para se esquecerem das suas experiências no outro mundo. Cuidava-se, no entanto, que as almas dos “órficos” tinham a propriedade de não reencarnar; é por essa razão que deviam evitar a água do Lete. “Saltei do ciclo das pesadas penas e das dores e lancei-me com pé ágil para a coroa desejada. Refugiei-me no seio da Dama, rainha dos Infernos.” E a deusa responde: “ó ditoso, ó Bem-Aventurado! Homem que eras, tu te tornaste deus” (trad, francesa de A. Boulanger)2.

O “ciclo das pesadas penas” comporta certo número de reencarnações. Após a morte, a alma é julgada, enviada temporariamente para um lugar de castigo ou de beatitude, e retorna à Terra depois de mil anos. Um mortal comum deve percorrer dez vezes o ciclo antes de escapar. Os “órficos” descreveram abundantemente os tormentos dos culpados, os “males infinitos reservados aos condenados”3. Kern chegou mesmo a afirmar que o orfismo foi quem primeiro criou o Inferno4. Com efeito, a catábase do Cantor em busca de Eurídice justificava todas as espécies de descrições do mundo infernal. Voltamos a encontrar o elemento “xamânico”, traço dominante no mito de Orfeu: sabe-se que em toda a Asia central e setentrional são os xamãs que, narrando com infinitos detalhes as suas descidas extáticas aos Infernos, elaboraram e popularizaram uma vasta e surpreendente geografia infernal5.

A paisagem e o itinerário esboçados pelas lamelas — a fonte e o cipreste, a estrada da direita — bem como a “sede do morto”, têm paralelos em numerosas mitologias e geografias funerárias. Certas influências orientais não devem ser excluídas. No entanto, trata-se mais provavelmente de uma herança comum imemorial, resultado de especulações milenares sobre os êxtases, as visões e os arrebatamentos, as aventuras oníricas e as viagens imaginárias; herança, por certo, diferentemente valorizada pelas diversas tradições. A árvore junto a uma nascente ou a uma fonte é uma imagem exemplar do “Paraíso”; na Mesopotâmia, a réplica dessa imagem é o jardim com uma árvore sagrada, e uma fonte, guardados pelo Rei-Jardineiro, representante do Deus (§ 22). A importância religiosa das lamelas consiste, portanto, em representarem uma concepção da pós-existência da alma diferente da atestada na tradição homérica. É possível que se tratasse de crenças e mitologias arcaicas mediterrâneas e orientais, conservadas até então em “meios populares” ou excêntricos, e que, há algum tempo, gozavam de certo prestígio entre os “órficos”, os pitagóricos e todos aqueles que se preocupavam com o enigma escatológico.

Mais significativa é, no entanto, a nova interpretação da “sede da alma”. As libações funerárias para aplacar a sede dos mortos são atestadas em numerosas culturas6. A crença de que a “Aguardente” assegura a ressurreição do herói é também difundida nos mitos e no folclore. Para os gregos, a morte é assimilada ao esquecimento; os mortos são aqueles que perderam a memória. Somente alguns privilegiados, como Tirésias e Anfiarau, conservam a memória depois da morte. A fim de tornar imortal o seu filho Etálides, concede-lhe Hermes “uma memória inalterável”7. Entretanto, a mitologia da Memória e do esquecimento modifica-se quando se desenha uma doutrina da transmigração. A função de Lete é perturbada: as suas águas já não acolhem a alma que acaba de deixar o corpo, a fim de fazê-la esquecer a existência terrestre. Ao contrário, Lete apaga a lembrança do mundo celeste na alma que retorna; à Terra a fim de reencarnar-se. O “esquecimento” não simboliza mais a morte, porém o retorno à vida. A alma que cometeu a imprudência de beber na fonte de Lete (“cheia de vício e de esquecimento”, como a descreve Platão, Fedro, 248 c) reencarna-se e é de novo projetada no ciclo do devir. Pitágoras, Empédocles e outros mais, que compartilhavam a doutrina da metempsicose, pretendiam lembrar-se das suas existências anteriores; em outras palavras, tinham conseguido conservar a memória no além-mundo8.

Os fragmentos inscritos nas lamelas de ouro parecem fazer parte de um texto canônico, espécie de guia do além, comparável aos “livros dos mortos” egípcio ou tibetano. Certos estudiosos contestaram-lhes o caráter “órfico”, considerando-os como sendo de origem pitagórica. Sustentou-se mesmo que a maior parte das ideias e rituais reputados “órficos” representam, na realidade, uma criação ou alterações pitagóricas. O problema é por demais complexo para que seja possível elucidá-lo em poucas páginas. Esclareçamos, no entanto, que a eventual contribuição de Pitágoras e dos pitagóricos, por considerável que seja, não modifica a nossa compreensão do fenômeno “órfico”. É certo que as analogias entre as lendas de Orfeu e Pitágoras são evidentes, da mesma forma que o paralelo entre a fama de que gozaram é inegável. Tal como o fabuloso “fundador de iniciações”, Pitágoras, personagem histórica e contudo “homem divino” por excelência, caracteriza-se por uma grandiosa síntese de elementos arcaicos (alguns deles “xamânicos”) e de audaciosas revalorações das técnicas ascéticas e contemplativas. Com efeito, as lendas de Pitágoras aludem às suas relações com os deuses e os espíritos, ao domínio que exercia sobre os animais, à sua presença em vários sítios ao mesmo tempo. Burkert explica a famosa “coxa de ouro” de Pitágoras, comparando-a com uma iniciação de tipo xamânico. (Sabe-se, de fato, que durante a sua iniciação os xamãs siberianos, segundo se acredita, têm os órgãos renovados e os ossos ligados com ferro.) Finalmente, a catábase de Pitágoras constitui ainda um elemento xamânico. Conta Jerônimo de Rodes que Pitágoras desceu até o Hades e lá viu as almas de Homero e Hesíodo, expiando pelo que de mal haviam dito sobre os deuses9. Tais traços “xamânicos” não são, aliás, exclusivos das lendas de Orfeu e Pitágoras. O hiperbóreo Ábaris, sacerdote de Apolo, voava sobre uma flecha (§ 91); Arísteas de Proconeso era famoso pelo seu êxtase que podia ser confundido com a morte, pela sua bilocação e pela metamorfose em corvo; Hermotimo de Clazômenas, considerado por certos autores antigos como uma encarnação anterior de Pitágoras, era capaz de abandonar o corpo por muito tempo10.

Às semelhanças entre as biografias lendárias acrescentam-se analogias entre as doutrinas e práticas dos “órficos” e pitagóricos: crença na imortalidade e na metempsicose, punição no Hades e retorno final da alma ao céu, vegetalismo, importância atribuída às purificações, ascetismo. No entanto, todas essas semelhanças e analogias não provam a inexistência do “orfismo” como movimento autônomo. Pode ser que certo número de escritos “órficos” sejam obra de pitagóricos, mas seria ingênuo imaginar que os mitos escatológicos, as crenças e rituais “órficos” tenham sido inventados por Pitágoras ou pelos seus discípulos. Os dois movimentos religiosos desenvolveram-se paralelamente, expressões de um mesmo Zeitgeist. Com a diferença de que, sob a direção do seu fundador, a “seita” pitagórica não somente organizou-se como sociedade fechada, de tipo esotérico, mas também os pitagóricos cultivaram um sistema de “educação completa”11. Além disso, não desdenharam a política ativa; durante certo tempo, os pitagóricos chegaram mesmo a deter o poder em várias cidades da Itália meridional.

Entretanto, o grande mérito de Pitágoras foi ter assentado as bases de uma “ciência total”, de estrutura holística, na qual o conhecimento científico estava integrado num conjunto de princípios éticos, metafísicos e religiosos, acompanhado de diversas “técnicas do corpo”.

Em suma, o conhecimento tinha uma função ao mesmo tempo gnosiológica, existencial e soteriológica. É a “ciência total” de tipo tradicional12, que se pode reconhecer tanto no pensamento de Platão como entre os humanistas do Renascimento italiano, em Paracelso ou nos alquimistas do século XVI. “Ciência total”, tal como era compreendida sobretudo pela medicina e pela alquimia indianas e chinesas.

Certos autores inclinam-se a considerar o movimento órfico como uma espécie de “Igreja”, ou uma seita comparável à dos pitagóricos. É, no entanto, pouco provável que o orfismo se tenha constituído em “Igreja”, ou numa organização secreta semelhante às religiões de Mistérios. O que o caracteriza — movimento ao mesmo tempo “popular” e que atrai as elites, comportando “iniciações” e dispondo de “livros” — aproxima-o mais do tantrismo indiano e do neotaoísmo. Esses movimentos religiosos tampouco constituem “Igrejas”, mas comportam “escolas”, representando tradições paralelas, ilustradas por uma série de mestres, às vezes lendários, e possuindo uma vasta literatura13.

Por outro lado, podem-se reconhecer nos “órficos” os sucessores dos grupos iniciatórios que, na época arcaica, exerciam diferentes funções sob o nome de Cabiras, Telchines, Curetes, Coribantes, Dáctilos, grupos cujos membros guardavam ciosamente certos “segredos de ofício” (eram metalúrgicos e ferreiros, mas também curandeiros, adivinhos, mestres de iniciação etc.). Os “segredos de ofício” relacionados com diferentes técnicas que buscavam o domínio sobre a matéria tinham simplesmente cedido lugar aos “segredos” referentes ao destino da alma depois da morte.

Se bem que o prestígio do orfismo tenha declinado depois das guerras médicas, as suas ideias centrais — o dualismo, a imortalidade, e portanto a divindade do homem, a escatologia —, sobretudo através da interpretação de Platão, não cessaram de preocupar o pensamento grego. A corrente sobreviveu também ao nível “popular” (os “orpheotelestaí”). Mais tarde, na época helenística, é possível identificar a influência de certas concepções órficas nas religiões de Mistérios, enquanto se aguarda a nova voga que o orfismo conhecerá nos primeiros séculos da era cristã, graças sobretudo aos neoplatônicos e neopitagóricos. É justamente essa capacidade de desenvolver-se e de se renovar, de intervir de maneira criadora em muitos sincretismos religiosos, que revela o alcance da experiência “órfica”.

Quanto à figura de Orfeu, ela continuou a ser reinterpretada, independentemente do “orfismo”, pelos teólogos judeus e cristãos, pelos hermetistas e pelos filósofos do Renascimento, pelos poetas desde Poliziano até Pope e desde Novalis até Rilke e Pierre Emmanuel. Orfeu é uma das raras figuras míticas gregas que a Europa, fosse ela cristã, iluminista, romântica ou moderna, não quis esquecer (ver tomo III).

NOTAS
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  1. Lamelas de Petélia e de Eleuterno. Cf. Guthrie, Orpheus, pp. 171 s. e a nova interpretação de Zuntz, Persephone, pp. 364 s. 

  2. O começo do texto é significativo. o iniciado dirige-se aos deuses infernais: “Venho de uma comunidade de puros, ó pura soberana dos Infernos, Eucles, Eubuleu e vós outros, deuses imortais. Pois orgulho-me de pertencer à vossa raça bem-aventurada. Mas o destino me abateu e os outros deuses imortais…” (ver, no entanto, a interpretação de Zuntz, op, cit., p. 318). Outra tabuinha revela detalhes importantes: “Sofri o castigo que mereciam as minhas injustas ações… Venho agora como suplicante para junto da resplandecente Perséfone, a fim de que, na sua benevolência, ela me envie para a morada dos santos”. A deusa acolhe-o com misericórdia: “Bem-vindo sejas, ó tu que experimentaste o sofrimento que nunca dantes havias sofrido… Bem-vindo, bem-vindo sejas tu, toma a estrada da direita para as campinas sagradas e os bosques de Perséfone” (trad. francesa de Boulanger, op. cit., p. 40). 

  3. “Mergulhados na lama, ser-lhes-á infligido um suplício apropriado à sua poluição moral (República, I, 363 d; Fédon, 69 c), como porcos, apraz-lhes chafurdar na imundície (cf. Plotino, I, 6, 6), ou esvair-se-ão em inúteis esforços para encher um tonel furado ou para carregar água numa peneira (Górgias, 493 b; República, 363 e), imagem, segundo Platão, dos insensatos que se entregam insaciavelmente a paixões sempre insatisfeitas, na realidade talvez punição daqueles que, não se tendo submetido às abluções catárticas, devem, no Hades, trazer constantemente, mas em vão, a água do banho purificador” (F. Cumont, Lux perpetua, p. 245). 

  4. Pauly-Wissowa, Realencyklopädie, s.v. “Mysterien” col. 1.287. Cumont inclina-se a identificar no orfismo a origem de toda “essa literatura alucinante” que, através dos mitos de Plutarco e do Apocalipse de Pedro, leva até Dante: op. cit., p. 246. 

  5. Cf. Eliade, Le Chamanisme, pp. 395 s. 

  6. Ver Eliade, “Locum refrigerii…”. 

  7. “Mesmo quando atravessou o Aqueronte, o esquecimento não lhe afogou a alma; e ainda que habite ora a morada das sombras, ora a da luz do sol, guarda sempre a lembrança do que viu”; Apolônio de Rodes, Argonáuticas, I, 463. 

  8. Cf. Eliade, Aspects du mythe, pp. 150 s. O exercício e a cultura da memória desempenhavam um papel importante nas confrarias pitagóricas (Diodoro, X, 5; Jâmblico, Vita Pyth., 78 s.). O tema do “esquecimento” e da relembrança, cujos primeiros testemunhos se referem a certas personagens lendárias gregas do século VI, exerceu considerável papel nas técnicas contemplativas e especulações indianas; voltará a ser introduzido pelo gnosticismo (§ 130). 

  9. Eliade, De Zalmoxis à Gengis-Khan, p. 117. A lista das lendas miraculosas relativas a Pitágoras, com as suas fontes e a bibliografia recente, figura em Walter Burkert, Weisheit und Wissenschaft, pp. 118 s., 133 s., 163 s. (= Lore and Science in Ancient Pythagoreanism, pp. 120 s., 141 s., 166 s.). Faltam, no entanto, entre essas lendas referências às viagens extáticas de tipo xamânico. 

  10. Ver Eliade, De Zalmoxis à Gengis-Khan, p. 45, notas 44-45. Cf. ibid., pp. 45-46, outros exemplos similares. 

  11. Completando as suas regras ascéticas e morais pelo estudo da música, da matemática e da astronomia. Mas, como se sabe, o fim último dessas disciplinas era de ordem mística. Com efeito, se “tudo é número” e “tudo é uma harmonia dos contrários”, tudo aquilo que é vivo (inclusive o Cosmo, pois também ele “respira”) é aparentado. 

  12. O fato de, depois de Aristóteles, esse tipo de “ciência total” perder o seu prestígio, e também o orientar-se a investigação científica para uma metodologia que, na Europa, dará os seus primeiros resultados brilhantes nos séculos XVI e XVII, não implica de modo algum a insuficiência do método holístico. Trata-se simplesmente de uma nova perspectiva e de outro télos. A alquimia não era uma química embrionária, mas uma disciplina solidária de outro sistema de significações, e que visava a um objetivo diferente do da química. 

  13. E, tal como no caso do tantrismo, certos textos órficos de data mais recente são apresentados como revelações de uma doutrina antiga — o que, aliás, pelo menos em certos casos, pode ser exato.