Estamos no termo de um longo diálogo rico em peripécias (República X) mas que em nenhum momento perdeu seu fio diretor: a justiça. Resta mostrar em um último debate que a virtude e seu contrário não recebem sua verdadeira sanção senão na vida futura. Para dar a seu discurso seu caráter de revelação divina, Sócrates faz apelo ao relato do mito de Er, cuja alma, se diz, reveio à terra depois de ter estado no reino dos mortos. Sua revelação aporta um complemento essencial aos mitos do Górgias e de Fedão: como se opera, uma vez o juízo estabelecido e a pena purgada, o retorno à vida das almas submetidas à reencarnação? A República fecha depois da passagem da morte aos Infernos. (Geneviève Droz)


b) O mito de Er, o Panfílio: no livro X da República (614 a), Platão expõe um mito acerca da escolha dos gêneros de vida, mito que retoma o tema da metempsicose assim como os do Fedro (248 c) e do Fédon (80 e); mas aqui é o problema da liberdade que é discutido e nele poderíamos encontrar tema para uma reflexão sobre a questão das relações entre a essência e a existência tão frequentemente falada hoje em dia.

Er foi morto no campo de batalha, mas, quando estava para ser enterrado, voltou à vida e contou aos seus companheiros que a sua alma, saída do corpo, conseguiu ver no campo do além. Depois da morte, os juízes dirigem as almas dos justos para uma estrada que leva ao céu e as almas dos criminosos para uma estrada que desce; cada crime é expiado dez vezes e cada expiação dura cem anos. Depois de nos ter dado uma descrição bastante complicada do universo1, Platão conta-nos como se opera a escolha dos gêneros de vida. Um hierofanta vai distribuir a cada alma um número em função do qual “esta poderá escolher entre um grande número de vidas que lhe são propostas em vista de uma existência futura; mas, antes de escolher, põe-nas de sobreaviso e coloca-as frente às suas responsabilidades: «Almas efêmeras, ides começar uma nova carreira e renascer para a condição mortal. Não é um gênio que irá tirar-vos à sorte, vós é que ireis escolher o vosso gênio. O primeiro que o acaso designar escolherá primeiro a vida pela qual estará ligado por necessidade. A virtude não tem dono; cada um terá mais ou menos conforme a honrar ou a negligenciar. Cada um é responsável pela sua escolha, a divindade está fora de questão. (…) Mesmo o último a chegar, se escolher com cuidado e se se esforçar por bem viver, pode encontrar uma condição conveniente e boa. Que o primeiro escolha com atenção, e que o último não perca a coragem.» O hierofanta atira, portanto, à frente das almas pacotes de vidas de todos os gêneros: vidas de animais, vidas de tiranos, vidas de homens célebres, vidas de homens obscuros, vidas de atletas, etc. Ora, infelizmente, a maioria das almas são guiadas na sua escolha apenas pelos hábitos da sua vida anterior. O primeiro a escolher precipita-se sobre uma vida de tirano; levado pela imprudência e pela ganância, «não viu que a sua escolha o destinava a comer os seus próprios filhos, e outros horrores; mas depois de ter bem visto como era, bateu no peito e lamentou-se por ter assim escolhido, sem se lembrar dos avisos do hierofanta; pois, em lugar de se acusar a si próprio dos males que lhe caíam em cima, acusava a fortuna, os demônios, tudo menos ele próprio» (619 c). Ulisses, chamado para escolher em último, e aliviado da ambição pelas suas provações anteriores, escolhe uma vida humilde abandonada a um canto, desprezada por toda a gente.

Depois de todas as almas escolherem a sua nova vida, a virgem Láquesis, filha da Necessidade, leva-as às Parcas; o gênio que cada uma escolheu coloca nas mãos da alma que irá guiar o fuso de Cioto, e leva-a em seguida para a trama de Átropo para tornar a decisão irrevogável. As almas são em seguida levadas para a planície do Lete, obrigadas a beber a água do rio; esquecem deste modo a sua vida passada e regressam à superfície da terra, onde renascem para uma vida nova.

Ao longo deste mito, Platão insiste na ideia de que cada um de nós escolhe livremente a vida que quer levar; mas ao escolher uma vida é o pacote inteiro que ele escolhe, cada um é, portanto, responsável pela escolha do seu destino e não se deve acusar os deuses pelos acontecimentos infelizes que poderão recorrer dessa escolha. O essencial, mas também o difícil, é raciocinar antes da escolha, e não depois, ou seja, tarde de mais, quando estamos frente às consequências que tivéramos a ligeireza de não prever. (JEAN BRUN)


  1. 615 b e seg. Acerca desta passagem, cf. A. Rivaud, in Revue d’histoire de la philosophie (Janeiro-Março 1928), e L. Robin, Platon, pp. 203 e seg. 

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