Eros e Psique 4

MITOLOGIA — EROS E PSIQUE
CAPÍTULO 4
Enquanto isso, nessa mesma noite, o esposo que ela não conhecia voltou a advertir a esposa:

— Não vês o perigo que te espreita de longe? Fortuna trama e se abaterá sobre ti, se não procederes com a máxima cautela. As lobas pérfidas se esforçam por armar-te uma cilada, cuja pior armadilha é persuadir-te a contemplar o meu rosto. Já te adverti inúmeras vezes de que nunca mais o verás se o contemplares uma única vez. Portanto, quando essas bruxas vierem com suas almas desejosas de vingança — e sei que virão —, não converses com elas, ou se a tua inata bondade e a delicadeza do teu espírito não permitir isso, ao menos faças ouvidos moucos ao que te disserem sobre mim, e não respondas a qualquer das alusões que te fizerem. Pois dentro em breve teremos um filho. Embora ainda sejas uma menina, darás à luz uma criança. Se guardares nosso segredo, ela será um deus, mas se o profanares, será tão-somente um mero mortal.

Psique exultou com a notícia de ter um filho divino e bateu palmas de contentamento para expressar sua alegria e regozijou-se com a dignidade de poder vir a ser chamada de mãe. Amedrontada, ela contava os dias e as luas novas que se escoavam rápidos e admirava-se com o fato de o princípio de uma vida poder crescer inconsciente em seu ventre arredondado, a partir de um minúsculo ponto.

Aquelas bruxas, no entanto, as mais horrendas fúrias, já se aproximavam a toda a pressa, destilando veneno. Então o marido de Psique, mais uma vez e, dessa feita, mais incisivo, advertiu-a:

— O dia se aproxima da desgraça mais terrível, as inimigas que pertencem ao teu mesmo sexo, com a vingança no sangue, já pegaram em armas e se puseram a caminho, visto que já planejaram sua carnificina e fizeram soar suas trombetas de guerra; seus punhais desembainhados já estão perto da tua garganta! Que pena, minha doce Psique, que perigos terríveis nos ameaçam! Tem piedade de ti e do nosso filhinho e detém com teu comportamento sagrado a má influência que se aproxima da nossa casa. Salva-nos, a ti, a mim e ao teu filhinho da destruição total! Essas mulheres assassinas, a quem não deves chamar mais de irmãs, pois os laços de sangue foram desfeitos pelo ódio e esmagados ao chão, pisados pelos seus pés: não as ouças, deixa-as uivar no cume do rochedo, como as sereias com suas vozes fúnebres e, sobretudo, nem sequer olhes para lá!

Psique derrama novas lágrimas e pede com voz trêmula:

— Recentemente, tiveste uma prova da minha lealdade e viste como pude ser parcimoniosa com minhas palavras: não será agora que farei menos para manter a firmeza dos meus sentidos. Portanto, dá ordens ao Zéfiro para que ele te obedeça e permite que eu ao menos veja o rosto de minhas irmãs. Por estes teus cabelos sedosos que sinto roçar por todo o corpo, pela tua pele delicada e macia semelhante à das minhas faces, por esse peito ardente de amor do qual não conheço a aparência, por essa criancinha na qual ao menos verei tua imagem, permite, por minhas súplicas comovidas pela tristeza, permite que eu goze dos abraços de minhas irmãs e reanima a alma da tua Psique com nova alegria! Não mais procurarei ver teu rosto e nem mesmo a escuridão da noite será um obstáculo à minha felicidade, pois tenho-te em meus braços, ó luz da minha vida!

Comovido pelo tom acariciante dessas palavras, o esposo enxuga as lágrimas da sua Psique com os cabelos, e visto estar perdidamente apaixonado por ela, curva-se de novo aos seus caprichos. Mas eis que é chegada a hora de ele afastar-se, pois já raia a aurora de um novo dia!

O par de conspiradoras, no entanto, sem sequer visitar os pais, dirige-se logo ao alto do rochedo, tão grande era sua pressa em executar o sórdido plano. Tão logo chegaram, nem mesmo esperaram por Zéfiro, lançando-se temerariamente no abismo. A contragosto, pois lembrou-se das ordens do seu deus, o vento brando as acolheu no colo e depositou-as no solo. Elas dirigiram-se logo ao castelo, sem hesitações, abraçando a presa inocente com fingida alegria, con-gratulando-se com ela pela sua gravidez, no intuito de eliminar qualquer suspeita. Em seguida, passaram logo às perguntas costumeiras, com voz melíflua:

— Psique, tu não és mais uma menina como antes, pois de certo modo já és mãe! Que tão grande tesouro trazes em teu ventre! Com que alegria alegrarás a nossa casa! E como serás feliz, por poder criar tão linda criança. Se ela corresponder à beleza dos pais, tu darás à luz um verdadeiro Cupido!

Assim, com fingida simpatia e cínica preocupação, já conseguem comover a alma pura da irmã.

Esta as aconselha a descansar depois de tão cansativa viagem, pedindo que se refresquem com os gostosos vapores do banho. Em seguida, serve-lhes uma lauta refeição no belíssimo aposento destinado a essa finalidade, ofertando-lhes as mais deliciosas iguarias, inclusive carne enrolada. Ordena que a cítara entoe lindas canções, à flauta pede que sopre doces sons, música celestial que se completa com um coro de vozes. As melodias enternecem os sentidos das ouvintes, embora nenhuma presença humana seja visível. Nem mesmo assim, a perfídia das vingativas mulheres se abranda, nem mesmo essas melodias doces como mel as enternecem Ao contrário, logo vieram as inevitáveis perguntas sobre o marido da irmã: quem ele era, o que fazia e a que linhagem pertencia. Inocente, Psique esquecida do que dissera da última vez, se contradiz, respondendo que o esposo era um riquíssimo comerciante de meia-idade, cujo cabelo grisalho já começava a escassear. E depois dessa inocente mentira, imediatamente as entregou ao costumeiro veículo alado, Zéfiro, depois de cobri-las novamente de régios presentes.

Mas dessa vez, assim que foram erguidas pelo brando sopro do vento até o cume do rochedo, elas confabularam, durante o caminho para casa:

— O que dizes, minha irmã, sobre as monstruosas mentiras dessa bruxa? Da outra vez, o marido era um jovem lindíssimo cuja barba era macia como um floco de lã; agora ele é um velho,.cujo cabelo brilha com a cor de prata da meia-idade. Quem será este, que em tão breve intervalo de tempo transformou-se num homem idoso? Ou essa mulherzinha danada está mentindo, ou ela simplesmente ignora o aspecto do marido. Seja qual for a verdade, temos de dar um jeito de destruir sua prosperidade. Se ela não conhece o seu homem, com certeza casou-se com um deus e traz em seu ventre o seu germe, ao qual dará à luz! Decididamente: se ela de fato for a mãe de um rebento divino — enforco-me com uma corda cheia de nós! Portanto, tratemos de voltar à casa de nossos pais e mais tarde começaremos a inventar as fábulas que lhe contaremos em retribuição às mentiras que nos contou.

Perturbadas, mal cumprimentaram os pais, passando além disso a noite em claro. E, já pela manhã, estavam novamente no palácio de Psique, transportadas como sempre sem nenhum perigo pelo vento brando; e com lágrimas de fingida preocupação, que conseguiram através do expediente de esfregar com força as pálpebras, cumprimentaram a irmã, lançando mão do seguinte ardil:

— Estás sentada aqui em meio a tanta felicidade, sem conhecer a tão grande desgraça e o perigo que te ameaçam. Nós, entretanto, que nos preocupamos contigo e com os teus assuntos, sentimo-nos mal diante do teu infortúnio. Soubemos a verdade, e por sermos solidárias com a tua dor, não a podemos ocultar de ti: quem se deita a teu lado à noite na cama não é um homem, mas uma serpente enroscada em mil anéis, com as fauces túrgidas de peçonha, a boca larga como um abismo. Lembra-te agora do oráculo de Apolo, que te predestinou a uma união com um monstro. E vários camponeses e caçadores que andam por aí pela região, afirmam que a têm visto à noitinha, quando atravessa o rio próximo em direção ao palácio. Não haverá de demorar muito, para que ela te devore e também à criança que trazes no ventre; basta engordares um pouco mais. Só te resta tomar uma decisão: queres aceitar nossa ajuda e morar conosco, libertando-te deste perigo, ou preferes ser enterrada nas entranhas dessa besta selvagem? Quando, porém, te sentires solitária, nesse rico país de vozes incorpóreas, ou quando não suportares mais a companhia conjugal desse amor misterioso e os abraços da víbora peçonhenta que te faz companhia à noite, não te esqueças que nós, tuas leais irmãs, te avisamos do perigo.

Transtornada por essas palavras do mais puro horror, Psique perde a consciência e acaba por expulsar da memória as advertências do esposo e as promessas que lhe fez e cai nas profundezas da sua infelicidade; e, pálida como um cadáver e com palavras entrecortadas pela emoção, acaba por confessar às irmãs:

— Na verdade, minhas queridas, fizestes o que era certo vindo me advertir em nome de um amor sincero e, ao que parece, quem disse o que viu também não mentiu. Pois é verdade que nunca vi o rosto do meu esposo e também não sei a que linhagem pertence; apenas ouço a sua voz noturna, e me entrego a um esposo cuja estatura desconheço e que se desvanece pela manhã como se fosse ar; acho que tendes razão ao dizer que se trata de um monstro. Ele também receia que eu veja os seus traços e me ameaça com uma grande desgraça se tiver a curiosidade de contemplar-lhe as feições. E se puderdes trazer-me a ajuda necessária, suplico-vos que me protejais agora. Caso contrário, mais tarde tereis a lamentar o ter negligenciado o préstimo de uma boa ação.

Tão logo perceberam as pérfidas irmãs que haviam tocado o coração inocente da irmã, já lhe dão sugestões, transmitindo-lhe planos terríveis. Uma delas disse afinal:

— Visto que ainda funciona o vínculo de sangue da nossa origem comum, visto que o que pretendemos é mantê-la imune ao menor perigo, vamos mostrar-te o caminho, o único que pode levar-te à viagem da salvação, revelando-te nosso plano há muito arquitetado. Deves preparar um punhal de ponta bem afiada que caiba na palma da tua mão, e deves ocultá-lo ao lado da cama em que costumas dormir; e enche um candeeiro adequado de óleo para que a luz brilhe com clareza, mas o escondas sob a proteção de uma redoma opaca, porém, cuida de guardar o mais absoluto segredo sobre teus preparativos. Quando então a imunda serpente subir como de costume ao leito, e já tiver se estendido e passado do sono leve para o profundo, esse será o momento propício em que terás de deixar silenciosamente o leito, descalça, para que não se ouçam os teus passos leves; deves descobrir o candeeiro iluminando profusamente o rosto do monstro; aproveita para finalizar teu ato magnífico cortando decididamente, de um só golpe de punhal, que deverás ter na mão direita, o anel que fica entre o pescoço e a cabeça da serpente. Nossa ajuda não te faltará — estaremos a teu lado até que executes o monstro—e depois que tivermos juntas levado todas as riquezas deste lugar, nós te casaremos com um homem de verdade.

Embora tivessem prometido ficar a seu lado, quando viram que suas palavras inflamadas já haviam surtido efeito no apaixonado coração da irmã, elas se apressaram em sair dali, pois temiam grandes desgraças para si mesmas. E com a costumeira ajuda do vento alado voltaram ao cume do penhasco e, com a maior das pressas, entraram logo em seus navios, empreendendo rapidamente a viagem para casa.