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[…] o que se poderia entender aqui por «existir»? Ser indeterminadamente, i. e., «haver»? Ou ser segundo uma particular qualificação, a saber, ser «na realidade»?

No primeiro caso, tudo é: a mesa, a árvore, mas também o unicórnio e o centauro, em suma, tudo o que sob qualquer modalidade pode ser ou ser pensado como sendo; e, nesta acepção, a existência nada acrescenta ao ser da ideia e nada diz sobre o tipo de ser da ideia. No segundo caso, o sentido do existir está dependente do valor que se atribuir à expressão «ser na realidade», a qual cobre todos os matizes que convêm à palavra realidade.

Em sentido forte e próprio, «ser na realidade» parece querer significar «ser realmente», i. e., independentemente da nossa vontade e, em geral, da nossa consciência e por oposição ao «ser em pensamento», ao «ser em sonho», «em expectativa», «em crença», «em desejo».

Ninguém contesta seriamente que, para Platão, a ideia seja justamente «em realidade», na acepção referida; o que parece sugerir-se é que a própria realidade da ideia é tal apenas «em pensamento» ou «em desejo», i. e., que o próprio ser real da ideia é um ser real pensado ou desejado, cujas pretensões teriam ainda de ser provadas como valendo «para a realidade».

Esta objecção parece fundar-se, todavia, numa deficiente avaliação da ideia platónica, que subverte o verdadeiro sentido da relação entre ideia e particular e que, a limite, pede para a ideia um tipo de realidade e de existência que lhe são irredutivelmente avessas. Na verdade, a realidade desta mesa ou daquela árvore não é posta em causa; o que se questiona, de um ponto de vista platónico, é se essa realidade lhes inere enquanto essa mesa ou aquela árvore, ou se, pelo contrário, toda a sua realidade lhes advém de ser mesa e de ser árvore.

Se se considerar que a ideia é uma outra mesa e uma outra árvore para além das mesas e árvores «reais», a saber, a própria Mesa e a própria Arvore existindo algures como coisas inteiramente distintas, dificilmente se pode sequer fazer justiça à posição platónica, porque a realidade foi já suposta como exclusiva do particular e à ideia só resta a existência de um conceito [374] e, dada a natureza da situação, de um conceito forçosamente manqué. Mas se, pelo contrário, se aceitar que a ideia de Mesa não é uma outra coisa para além desta mesa, i. e., disto aqui a que chamamos mesa, senão que, no apontar que diz «isto é uma mesa», a ideia é tal é onde isto se reconhece como mesa ou, de outro modo, onde a Mesa se revê nisto, a alegação platónica torna-se mais clara. Pois é a esta luz que Platão pode declarar que o que é realmente é a Mesa e não esta mesa, é a ideia e não «isto», porque «isto» só é enquanto é algo, a saber, uma mesa, e esse seu ser mesa não é senão a ideia.

Nesta medida, Platão não se limita a reivindicar, «em pensamento» ou «em crença», que a ideia é na realidade; a sua afirmação baseia-se na própria identificação da ideia com a realidade, i. e., com a realidade do particular, de que ela não é senão um outro nome ou uma designação abreviada.

Evidentemente, é sempre possível alegar abstractamente que a ideia só pode ser tomada como a realidade do particular num sentido específico e não em geral, e nem sequer no sentido próprio de realidade. Na verdade, dizer perante esta mesa que a ideia (o «ser mesa») é que é realmente a mesa não é o mesmo que afirmar, indeterminada e absolutamente, que a ideia é que é realmente; pois, dir-se-ia, o que é real nesta mesa não é o ser mesa (a ideia), mas sim o ser esta. Por outras palavras, o que é real é o «isto», o que é realmente é ser «isto», não o ser mesa ou o ser árvore.

Supõe-se portanto que ainda que se retirasse a isto tudo o que nele é eidético sobraria muito embora justamente isto e que isto é que é real — i. e., o puro facto de estar aqui isto, a presença de um «isto» como puro factum irredutível.

Todavia, o que assim se revelaria finalmente seria o verdadeiro paradigma de realidade e, portanto, de existência enquanto ser na realidade que sustentava toda a objecção: o «isto» na sua facticidade e na sua irredutível presença, o «isto» despojado de toda a determinação eidética, enquanto, se se quiser, pura materialidade.

MESQUITA, A. P. Reler Platão. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1995.