Excertos de Hannah Arendt, “A Condição Humana”
Há íntima relação entre a imprevisibilidade do resultado e o caráter revelador da ação e do discurso: o agente se revela sem que se conheça a si mesmo ou saiba de antemão «quem » revela. O velho ditado de que ninguém pode considerar-se eudaimon antes de morrer talvez nos ajude a identificar o problema, se pudermos recuperar seu significado original após dois mil e quinhentos anos de inveterada repetição; nem mesmo a tradução latina, já proverbial e corriqueira na Roma antiga — nemo ante mortem beatas esse dici potest — transmite o significado original, embora talvez tenha inspirado a prática da Igreja Católica de só beatificar os santos depois de mortos há bom tempo. Porque eudaimonia não significa felicidade nem beatitude; é intraduzível e talvez até inexplicável. Tem a conotação de bem-aventurança, mas não no sentido religioso; significa, literalmente, algo como o bem-estar do daimon que segue o homem durante toda a sua vida e que é a sua identidade inconfundível, mas que só transparece e é visível para os outros.1 Portanto, ao contrário da felicidade, que é um passageiro estado de ânimo, e da boa sorte, que pode visitar-nos em certos períodos da vida e ausentar-se em outros, a euduituonia. como a própria vida, é condição duradoura: não pode ser mudada nem é capaz de produzir mudanças. Segundo Aristóteles, ser eudaimon e ter sido eudaimon são a mesma coisa, assim como «viver bem» (eu dzen) é o mesmo que «ter vivido bem» durante toda a vida; não são estados ou atividades que mudam a qualidade de uma pessoa, como aprender e ter aprendido, que indicam dois atributos inteiramente diferentes da mesma pessoa em momentos diferentes2.
Quanto a esta interpretação de daimon e eudaimonia, veja-se Sófocles, Édipo Rei 1186 ff., especialmente os versos: «Pois que homem possui mais eudaimonia que a que deriva da aparência e desvirtua em sua aparência?». É contra esta distorção inevitável que o coro afirma: estes outros veem, «têm» diante dos olhos, como exemplo, o daimon de Édipo; a desgraça dos mortais é serem cegos ao próprio daimon. ↩
Aristóteles, Metafísica 1048a23 ff. ↩