63. Grave injúria cometeríamos contra o leitor supondo que nesta altura, ainda não lhe tenha ocorrido que Platão, em termos de uma lógica imediadora entre aspectos que se nos oferecem na ambiguidade de um mito, muito bem se entende, post factum, como o término de um desenvolvimento de ideias germinalmente esparsas pelos escritos de seus antecessores. O khorismós («separação») do mundo sensível e do mundo inteligível, já em ténues traços se desenha em Anaximandro pela distinção da perceptibilidade das diferenças num mundo de coisas limitadas, e a imperceptibilidade do Indiferenciado. Daí, que se possa suspeitar de um dualismo disfarçado, no monismo dos Milésios. O Ser de Parmênides é indiferenciado e invariante; do lado dele está a verdade. O mundo sensível é questão de doxa («opinião»), mas esta pode vir a ser mais verosímil, se a considerarmos como imitação do Ser, e este, como modelo ou paradigma do mundo. Em todo caso, Ser inteligível, correlato de um pensar, na medida em que pensar é pensar o Mesmo e Ser é ser o Mesmo, afasta-se do mundo sensível, correlato da opinião, na medida em que sentir é sentir a diferença entre o mesmo e o outro, e o opinar supõe que não se saiba que o mesmo e o outro são complementares, do ponto de vista da imperceptível unidade do Ser. Empédocles introduz, talvez ainda inabilmente, uma alma que, em Platão, terá olhos para ver o que jamais viram os olhos do corpo: o que é, em sua indiferenciada e invariante identidade. O dualismo psico-físico, do orfeo-pitagorismo ou do «xamanismo» intruso, é o correlato subjectivo do dualismo objectivo de um mundo dividido pela linha que separa o sensível do inteligível. E esta linha é a do horizonte, na sua codificação filosófica. Platão refere o khorismós, tão característico de seu sistema, a seu mais próximo antecedente: Anaxágoras (Phaed., 97 b e segs.). A citação do frg. 12 é pertinente e oportuna: «Tudo o mais participa de tudo; mas o Noûs é infinito e autônomo, e a nada se mistura. Só ele existe à parte, por si mesmo. Se não existisse por si, e com outra coisa se misturasse, de todas participaria; pois em tudo há uma parte de tudo, como antes disse. E o quer que se misturasse ao Noûs, impedi-lo-ia de governar as coisas que efetivamente governa, existindo, como existe, por si. Pois ele é, de todos os entes, o mais subtil e o mais puro; completo conhecimento de todas as coisas possui, e o maior poder. Tudo o que tem alma, grande ou pequeno que seja, está sob o poder do Noûs. Foi ele também que ordenou a rotação do todo, e lhe comunicou o inicial impulso. De princípio, este impulso, só o exerceu sobre uma parte menor, mas a rotação propaga-se e mais se há-de propagar ainda. Misturadas, separadas ou distintas, todas as coisas o Noûs conheceu. Da maneira como devia ser, da maneira como foi e já não é, e da maneira como é e será, tudo o Noûs ordenou. Dispôs ele também esta revolução dos astros, do Sol e da Lua, do ar e do éter, em via de separarem-se. E separaram-se do subtil o denso, do frio o quente, do obscuro o luminoso e do úmido o seco. Muitas partes existem de muitas coisas. Nada, porém, completamente se separa e inteiramente se distingue, a não ser o Noûs. O Noûs todo ele é idêntico, o maior e o menor. Aliás, das restantes coisas, nenhuma existe que a outra se assemelhe; e cada uma é e foi, do modo mais claramente manifesto, aquilo mesmo que mais contém.» Para final deste parágrafo, reservamos a observação de que, certamente, não está fora do sistema platônico, pelo menos o sugerir aquilo que Parmênides e Empédocles expressamente denunciaram: revelação, ou inspiração, desfecha o processo lógico da demonstração racional.