80. Com esta maneira de interpretar a relação entre o frg. 26 e o frg. 30 (e 31), concorre o que acima (§ 76) ficou escrito sobre certa forma do pensamento arcaico dos Gregos: o «meio proporcional». No frg. 26, temos sono e vigília, como no frg. 1 e nos demais que citamos em cotejo, no propósito de evidenciar aquela proporcionalidade que exige, como quarto termo, um x igual a uma «vigília tal que, comparada com ele, a vigília comum é sono». Neste fragmento, comparecem sono e vigília, e não há motivo para crer que esta não seja a vigília comum; mas, antes do sono, está a morte, e depois da vigília não está nada. Ou estará a mesma Vigília, num silêncio tão eloquente, quanto o do frg. 1? A presunção, aqui, é de que também o frg. 26 entre no esquema do «meio proporcional». Mas, neste caso, a proporção assumiria uma forma mais complexa: a morte está para o sono, como o sono está para a vigília, como a vigília está para x (lembremos, muito a propósito, que Frankel aplica o esquema da proporcionalidade à imagem da Caverna platônica, acrescendo o número de termos). Apenas, a gradação ascendente do frg. 1 se encurvaria em círculo, no frg. 26, e o x, que ainda pode ser a Vigília para além da vigília comum, redundaria na Morte, entendida como «viragem» da vida ao seu contrário, e subentendendo a unidade sem nome, da vida e da morte. Sem nome; pois o que aparece em seu lugar é uma cifra: o «fogo». Note-se bem que sobre esta interpretação, valha o que valer, não paira qualquer ameaça do pessimismo concomitante de toda separação do sensível e do inteligível, que se proponha como abismal e intransponível. Pois em nada se opõe ao sentido do frg. 36: «Para as almas, morte é tornarem-se água, e da água a alma.» O mesmo se diz, com mais brevidade, no frg. 103: «Igual é o início e o término, na circunferência de um círculo», ou no frg. 60: «O caminho para cima e o caminho para baixo, é um e o mesmo.» Entendam-se, estes dois, como exemplos da unidade dos contrários; mas nada impede, e tudo leva a crer, que também, e sobretudo, se refiram à doutrina da «anathymíasis» (exalação): do elemento úmido, «viragem» do fogo em seu contrário, por «reviragem» em sentido inverso, reobtém-se o fogo, isto é, a alma. A propósito da teoria de Schwabl acerca da relação entre a «Via da Verdade» e a «Opinião dos Mortais», perguntávamos se Parmênides não estaria mais próximo de Heráclito, do que vulgarmente se julga (§ 54). Mas há uma proximidade por semelhança e uma proximidade por contraste. Já nos referimos a uma e a outra (final de § 74). Chegou o momento de insistir no tema. Primeira, é a vez da proximidade por contraste. O fogo está presente na «Doxa» parmenídea, pela Luz: a mesma luz, na constituição do Cosmo e na constituição do homem; mas, ainda que alguma vez um homem chegasse a constituir-se apenas de Luz, por exclusão de tudo quanto na mistura era Noite, nem por isso ele viria a morar no Ser, pois a Luz somente, nem sequer o representa ou imita (em sentido platônico), no domínio da convenção. Em Heráclito, só vemos um convencional oposto ao real, no frg. 102: «Para Deus todas as coisas são belas, boas e justas; os homens, porém, umas consideram injustas, outras justas.» De resto a harmonia visível anuncia a harmonia invisível, e a physis mostra-se, ainda que ame ou prefira ocultar-se. Parmênides parte da revelação do Ser para a compreensão das coisas; Heráclito parte da revelação da unidade dos contrários, neste mundo das coisas, para a visão de uma Unidade de todas as polaridades (cf. frg. 67): «Deus é dia e noite, Inverno Verão, guerra paz, saciedade fome; muda, porém, como fogo (ou óleo?) misturado com essências perfumadas: toma um nome, segundo o aroma de cada uma.») O único problema, que seria agora o da proximidade por semelhança, é o de saber se essa Unidade última, poderá considerar-se como separada. Só conhecemos um testemunho inequívoco, o do frg. 108: «De tantos, cujos discursos ouvi, nenhum chega a ponto de reconhecer que o Sábio é algo separado de tudo.» Snell, ao lado de «separado» (Getrenntes), escreve, entre parêntesis: ab-solutum. A palavra grega é kekhorisménon, particípio perfeito do verbo khorízein, com o mesmo radical que está em khorismós, o nome da grande «separação» que preside aos sistemas de Parmênides e Platão. Na codificação filosófica do fascinante mistério do horizonte, separação é a primeira e a última cifra.