Eudoro de Sousa (78): Heráclito – Fogo

78. O «fogo» é uma das cifras mais importantes e significativas, na codificação heraclitiana da realidade e, por isso mesmo, das mais equívocas. Quem poderá agaloar-se por alguma vez ter enunciado um juízo acerca do fogo, em que se declarasse sem ambiguidade o que ele é, nos diversos contextos de tão numerosos fragmentos que o referem ou que a ele se referem? Em Heráclito, o fogo anda ligado ao universo como um todo, à alma e à morte, ou ainda, a uma parte do universo, na figura do Sol ou do raio. Não importa por onde comecemos; mas seja pelo frg. 30, que diz assim: «Este Cosmo (arranjo ou ordenação do universo), o mesmo de (para) todos (os homens? os homens e os deuses?), nem (o) fez qualquer um dos deuses ou qualquer um dos homens, mas sempre era (foi) e é e será (um) fogo vivendo continuamente (eterno), alumiando-se por medidas e por medidas se apagando.» O fragmento seguinte (31) fala das tropaí do fogo — e não há razão para supor que este não seja o mesmo fogo do fragmento anterior (Snell reuniu os dois, em um só); o que tropaí (plural; sing. tropê) o mais verosimilmente significa é «transmutação», «mutação no oposto (contrário)» — «viragem», mediante a qual uma coisa que nos aparece de um modo, vem a aparecer-nos do modo contrário, ou como o contrário. Em suma, tropê é a palavra-chave, designando pelo menos uma das maneiras como vemos que os contrários coincidem. Guardemos esta observação semântica até o momento de inquirir o sentido do frg. 30. Repare-se, por ora, que numa parte deste fragmento está contida a totalidade de outro, o frg. 89: «os que vigiam têm um cosmo comum a todos», — portanto, é à compreensão do vigilante, para o qual a vigília comum é como o sono (cf. §§ 75 e 76), que se dirigem as palavras do frg. 30; consequência, ainda, é que provavelmente tenhamos que optar pela lectio-difficilior. A significação que parece óbvia é esta: o fogo representa o Um — a unidade do múltiplo, arranjado (kósmos!), como sabemos, em pares de contrários, cada um dos quais, sendo «um», constituem, todos em conjunto, a visível harmonia, que a invisível supera. O fogo seria pois o Um e a Harmonia invisível, da visível harmonia do universo. Mas, de encontro à interpretação óbvia, erguem-se dificuldades que não são poucas nem de pouca monta. Sem sair do teor do fragmento, depara-se-nos um fogo que, sendo eterno, se alumia e se apaga. Como se há-de entender que «continuamente vivo» (aeízôon) seja um fogo sujeito à alternância do alumiar-se e do apagar-se? Não morrerá ele, quando se apaga? E não reviverá, quando se alumia? Manifestamente, o aei («sempre», «continuamente») não condiz com a descontinuidade marcada pelos momentos de extinção. O contraditório aparente, resolver-se-ia por método semelhante ao que Eugen Fink (1905-1975) usou na interpretação do frg. 57? Neste caso, haveria que absolver do período, aquela parte em que se diz: «mas sempre era (foi) e é e será (um) fogo vivendo continuamente», pois fogo apagado é fogo morto. E então ficaríamos diante de um apagar-se e de um iluminar-se, que não se diz do fogo, mas do universo. Tem sentido: no tempo em que o universo dura, pode suceder-se um e outro «arranjo» (kosmos) e nada impede que do surgir de cada um se diga «alumiar-se»: no mundo, de um alumiar-se, surge, uma vez e outra, um e outro arranjo da multiplicidade que o constitui, e «alumiar» e «apagar» seriam verbos sugeridos pela cifra do Um, o «fogo», sem implicar a contradição com o «continuamente vivo». Esta lição, mais difícil, poderia ser a mais verdadeira. Mas temos de levar em conta as tropaí do fragmento seguinte. Por aí se vê que o fogo não pode ser tão simplesmente posto ao lado do Um — se este tem de se opor, solitário, além do extremo horizonte, ao mundo que está para aquém. Com efeito, no frg. 31, o fogo «vira» mar, do qual metade virá a ser terra e metade «turbilhão ígneo» (prèstèr), isto é, a «viragem» indica que o fogo e o mundo se constituem em outro par de contrários, em outra polaridade, como eram, por exemplo, o dia e a noite do frg. 57. A ambiguidade das cifras subsiste. Tal como o frg. 57, também o frg. 30 (com o frg. 31) pode ser lido de duas maneiras: ou o fogo representa o Um, como «continuamente vivo», diante de um cíclico alumiar-se e apagar-se de sucessivos kósmoi, ou o Um é absorvido na unidade dos contrários que são o fogo e o mundo. No primeiro caso, a cifra «fogo» aponta para a transcendência; no segundo, para a imanência. (Eudoro de Sousa, “Horizonte e Complementaridade”)

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