75. Por acaso não é que, de tantos fragmentos citados a propósito e a despropósito, grande número nos fale dos contrários. E embora se saiba que o «contrário», nos diversos fragmentos, se diz de vários modos (v. análise, em Kirk e Raven), e ainda permanece certo que, de qualquer modo que se diga, é sempre a polaridade, ou a oposição dos contrários, o que Heráclito tem em mente. No «contrário» vem à fala a mais extremada forma do «diverso», e a pluralidade, em Heráclito, organiza-se em pares de contrários, cada um dos quais, mesmo sem sair do sensível, vemos que são uma coisa só — basta atentarmos no LOGOS, que talvez não seja senão o próprio discurso, mediante o qual, o filósofo demonstra, como demonstrar se pode, a mesma coincidência dos contrários. Post factum ou post dictum torna-se grato exercício para o estudioso, tentar descobrir como teria Heráclito chegado à conclusão de que os contrários coincidem. Mas, desde o frg. 1, o filósofo nos adverte de que a descoberta, afinal, resulta do que poderia considerar-se como autêntica «conversão». É o que procuraremos mostrar, na imediata sequência, antes de prosseguirmos até um final que não poderá ser mais do que a formulação de outra hipótese, entre tantas que de hipóteses não passam, pretendam ou não desvendar, de uma vez, a secretíssima intenção do «obscuro» filósofo de Éfeso. Eis uma tradução do frg. 1: «Este logos, sendo (como o enuncio), sempre o não entendem os homens, quer antes de o haverem escutado, quer após o terem ouvido. Pois, ainda que tudo suceda em conformidade com este logos, inexpertos parecem, mesmo que experimentem palavras e ações, tal como eu as exponho, distinguindo a natureza de cada uma delas e explicando-a tal qual é. Os demais homens, porém, tão pouco sabem o que fazem despertos, quão pouco se lembram de que fizeram dormindo.» O que impressiona, na última frase, se cotejarmos este fragmento com alguns outros (21, 26, 63, 72, 73, 75, 88 e 89) é que a imagem do sono e da vigília deve ter exercido no pensamento de Heráclito certa obsessão fascinante; de contrário, dificilmente se explicaria que a encontrássemos nas primeiras linhas, se aceitamos — e nada se opõe a que a aceitemos — a opinião tradicional de que, no teor do frg. 1, possuímos os primeiros períodos, ou o primeiro aforismo, do livro que se lhe atribui. A ideia é esta: entre mim, que escrevi e conheço o logos, e os outros, que o desconhecem, tenham ou não o tenham lido ou escutado, é que eles tão pouco sabem o que fazem despertos, quão pouco se lembram do que fizeram dormindo. Se há uma oposição e um contraste entre o sono e a vigília, a gradação é tão diminuta, que mal se apercebe, pelo menos nos que não sabem nem querem saber. E repare-se que tais homens não são exclusivamente os da massa despreocupada do saber; entre esses, também há os que a muita ciência não ensinou a serem inteligentes (frg. 40), os que não compreendendo o que se lhes depara, nem o reconhecendo depois de o aprenderem (frg. 17), muito menos se acham à altura de entender a sua mensagem originalíssima. Do sono à vigília comum, vai um mínimo de gradação qualitativa. Despertos, agem e falam como dormentes (frg. 73), isto é, operam e cooperam, sem participação lúcida e consciente, com o que sucede no mundo (frg. 75). Tão insignificante é a gradação do sono à vigília, na vida mental do comum dos homens, que «morte» é o que veem despertos, e «sono» o que veem dormindo (frg. 21): com efeito, pouco há que distinguir entre os dois gémeos mito-poéticos, o Sono e a Morte. Mas, por outro lado, há uma vigília diferente, os que têm um Cosmo comum a todos (frg. 89), a dos vigilantes que se erguem diante de não sabemos quem, para serem os guardiães dos vivos e dos mortos (frg. 63). É possível que este último fragmento pertencesse a um contexto escatológico como pretende o autor que o cita. Não importa. O caso é que nos encontramos diante de duas vigílias, das quais só uma não é como que o outro lado do sono. Esta é a que Heráclito reivindica para si; a outra é a da multidão…