Eudoro de Sousa (76): Heráclito – Sono e Vigília

76. O pensamento arcaico dos Gregos conforma-se a alguns esquemas, facto por muitos estudiosos pressentido, mas que a bem poucos foi dado exprimir em sua iluminante concreção. Entre estes, foi Hermann Frankel quem logrou denunciar em Heráclito o sugestivo processo do meio proporcional. Os frgs. 82 e 83, que, infelizmente, são livre trasladação dos originais do filósofo, constituem-se como mais claro exemplo do mencionado esquema: (82) «Homem, tu ignoras aquelas palavras de Heráclito, que o mais belo dos símios é horrendo, comparado com o gênero humano e, como diz o sábio Hípias, a mais bela das marmitas é feia, comparada com a estirpe das donzelas?»; (83) «Que dizes, Sócrates? As donzelas, comparadas com os deuses, não estarão no caso das marmitas comparadas com as donzelas? Não pareceria feia a mais bela das virgens? Não afirma o próprio Heráclito, que tu invocas: o mais sábio dos homens, comparado com deus, parece um símio, em sabedoria, beleza e tudo o mais?» A norma é evidente (a:b = c:d): o símio está para o homem, como o homem está para Deus; a mais perfeita das marmitas está para a mais bela das virgens, como a mais bela das virgens está para a excelência da divindade. O processo encontra-se completa ou incompletamente formulado, plenamente expresso ou apenas sugerido, em muitos outros fragmentos. Podemos revertê-lo para o frg. 1: o dormente está para o vigilante, como o vigilante está para x. E que é este x, senão o homem que desperta para uma vigília tal que, comparada com ela, a vigília comum é sono? A vocação do filósofo manifesta-se, pois, como apelo a uma Vigília, como um toque de despertar do sono que os mais prosseguem dormindo, ainda que se julguem despertos. «A vida é sonho», nem literariamente, isto é, nem mesmo desvestida das insígnias da transcendência que lhe impôs o poeta espanhol, é uma verdade banal. Se o que dorme, vive no mundo que só ele sonha, e está voltado só para um, que é o seu próprio mundo sonhado (frg. 89), também os que todo o dia despertam para a vigília comum, percorrem sonambulicamente as sendas que cruzam e se entrecruzam no mesmo horizonte da cultura que receberam e que os recebeu. Na verdade, mesmo despertos, agem e falam como dormentes (frg. 73). Mas a relação sono-vigília, mesmo na vulgar imanência do fisiológico, tem um sentido: e esse, de algum modo se transfere para a segunda relação, vigília-x. Só que o primeiro sentido passa, agora, quase despercebidamente, do plano da imanência para o da transcendência. Da vigília comum, que nem tanto difere do sono, passa-se a uma Vigilância, à qual se acede por um autêntico salto para o transcendente. Chame-se-lhe — se algo é preciso chamar-lhe — uma transcendentização do horizonte próximo. Diga-se — se em algum dito se encontra apoio — que a grande Vigilância do filósofo tem o LOGOS por descrição do horizonte extremo. Mas o fundamental é compreender que o símbolo de igualdade, só verdadeiramente o é, na proporção a:b – b:c; pois na forma operacional-metafísica, de Heráclito, é mais a sugestão, o convite instante para superar a minorada gradação sono-vigília, por meio da «acrobacia» espiritual, em que uma vez se viu, como ver se pode, a real in-diferença do sono e da vigília. É neste ponto que muito naturalmente se poderia inserir toda a problemática atinente à obscuridade da expressão filosófica em Heráclito. A transcendência não tem linguagem que propriamente a exprima. Depois do quanto se escreveu acerca do LOGOS heraclitiano, que ficamos nós sabendo, que se possa expressar por palavras inequívocas, sem ambiguidade que nos deixe irremediavelmente perplexos, enrodilhados e empecidos em questões insolutas e insolúveis? Que é o LOGOS? O próprio discorrer do filósofo, a expressão verbal em que se distingue a natureza de cada uma das coisas, expondo-a tal qual é (frg. 1)? Ou o que faz que tudo venha a ser o que na verdade é, segundo uma lei que o filósofo não formula diretamente em nenhum dos fragmentos que restam de sua obra? Não cremos que haja ou jamais tenha havido alguém que, tendo alguma coisa a dizer, e bem quisesse dizê-la, de propósito, oculto ou declarada, obscuramente a dissesse. Heráclito é o «obscuro»; não mais, todavia, do que qualquer outro que o inviso tenha visto e o inaudito tenha ouvido. A transcendentização da experiência comum tem seu preço, que não é módico: paga-se pela troca inevitável da «expressão» pela «codificação», pelo câmbio indesejado das «coisas» que as palavras designam sem ambiguidade, por «símbolos», de que indefinidamente se fala, sem nunca lograr a exata expressão do que se pretende dizer. Assim é que no horizonte da grande Vigília avultam as cifras dos «opostos», do «fogo», do «prélio», e talvez até a do «logos», todas conjugadas na mesma codificação. Aliás, da impossibilidade de falar e da necessidade de não calar, testemunha o próprio filósofo, propondo-se orgulhosamente na sede do Oráculo: «O Soberano de Delfos não diz nem cala: dá sinais» (frg. 93).

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