Deixamos Heráclito para o fim, por duas razões que, de algum modo, sem sabermos por ora quais sejam, devem andar estreitamente correlacionadas. A primeira é que o filósofo não tem lugar na «história» da filosofia grega, se por tal entendemos o desenvolvimento do que se chama «filosofia», em qualquer direção bem definida a partir de problemas enunciados, de Tales de Mileto a Proclo de Atenas, isto é, do primeiro dos pré-socráticos ao último dos neoplatônicos. Heráclito não pode ser posto depois de qualquer um e antes de qualquer outro, por intrínseca necessidade de uma evolução do pensamento, seja qual for a ideia que se proponha como propulsora de uma evolução. Se, ainda hoje, compêndios e tratados de história da filosofia lhe designam um lugar que, com raríssimas excepções, é o da imediata precedência a Parmênides, o facto se deve, certamente, à parcialidade de um mal-entendido, voluntário ou involuntário. E a segunda é que o «obscuro» Heráclito permanece na obscuridade e ainda não vemos que luz possa esclarecê-lo. Ao que nos parece, os estudos mais recentes só penetram até o ponto, do qual bem se avista o que ele jamais pensou. Damos, por flagrante exemplo, a obra de Kirk (1954), mostrando com perfeita clareza o lugar e o tempo de onde arranca o erro de interpretação que viciou a história. Não há certeza mais certa do que esta: a «fluência» de todas as coisas não é a primeira nem a última palavra de Heráclito; nem sequer é palavra que alguma vez tenha designado o quer que Heráclito tenha por verdade a realidade: o pánta rhei é um dos maiores ludíbrios da história. A seguir vem a «dialéctica». Também não se vê o que possa ter iludido Hegel, a ponto de proclamar que todos os fragmentos de Heráclito foram incorporados na sua Lógica, o que, evidentemente, quer dizer que, por pouco, Heráclito falhara o alvo que ele se propôs atingir. «Fluência» da realidade e «dialéctica» dos contrários, uma em grau maior outra em grau menor, mais obscurecem a obscuridade do «obscuro» filósofo de Éfeso. Para Heráclito, o lugar predileto da história é o do adversário inominado, a quem Parmênides se oporia expressis verbis, no frg. 6. Porém, o mais que desses versos se infere é que eles poderiam referir-se a Heráclito (Mansfeld, cap. i) se demonstrável fosse, mediante provas internas ou externas, que Heráclito cronologicamente precedeu Parmênides, e, ainda, que Parmênides tivesse conhecimento da obra de Heráclito. Mas «a data de Heráclito tem de assentar em mera conjectura, e sua cronologia relativa, em provas internas, valham o que valerem tais provas. Na história da filosofia clássica, poucas fantasias têm tão picante ironia, quanto a ainda demasiado frequente confiança em provas externas, para datar Parmênides após Heráclito» (Stokes, 1971, p. 109). E quanto a provas internas: «pode dizer-se, por exemplo, que, se Parmênides conhecia a obra de Heráclito, seria possível, talvez mesmo provável, que Parmênides tinha Heráclito em mente, como principal representante de alguma das concepções que rejeita. Restam-nos algumas ‘reminiscências’ verbais, cujo efeito, se algum têm, há-de ser, evidentemente, considerado como acumulativo. Se há filólogos que prefiram decidir-se pelo efeito acumulativo, pouco ou nada se poderá fazer no sentido de que mudem de opinião. Mas o efeito acumulativo de ‘nadas’ é coisas nenhuma, e pode legitimamente duvidar-se que alguma das alegadas reminiscências tenham qualquer efeito; seria excessivamente difícil especificar uma só passagem de Parmênides que necessite a postulação de uma referência a Heráclito, para torná-la inteligível ou evidente. Se Parmênides e Heráclito têm em comum alguns elementos vocabulares, isso nada prova; ambos eram gregos, ambos, pelo menos no essencial, escreveram em dialecto jônico, e eram próximos contemporâneos. Não posso achar qualquer razão para supor que qualquer um tivesse conhecimento do outro» (ibid., pp. 126-127).
Eudoro de Sousa: Heráclito
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