Eudoro de Sousa: Ser

71. Se «o que é dizer» é «dizer o que é», e do que é, nada mais há a dizer, senão «que é», pois tudo o mais que dele se diga implica o dizer que não é, o que se dá no limite é a indizibilidade do Ser, ou, valendo o mesmo, a indiferença de tudo quanto dele se possa dizer. Platão parece falar da indizibilidade do Ser, quando afirma que a Ideia do Bem está epékeina tes ousías («para além da essência»); e à tácita pergunta cujos termos todos adivinham não falta quem responda prontamente que mais valeria esquecê-lo. Que fará a filosofia do que não pode dizer-se? Melhor é deixar o Ser para a contemplação do místico, e prosseguir falando daquilo de que se pode falar. Aqui, a mais triste ilusão é a do nosso tempo — que nem é a dos empiristas de todos os tempos — supondo que não se fala senão do sensível, e não vendo que entre a nossa irredutível subjetividade e o chamado mundo sensível se interpõem esquemas de inteligibilidade de todas as espécies. Paradoxalmente, o sensível é tão inefável quanto o Ser. Prosaico ou poético, todo o discorrer se situa entre duas transcendências, ou entre dois polos contrários da mesma transcendência. Para além do horizonte, pura inteligibilidade e pura sensibilidade são in-diferentes. Quando Parmênides, e Platão na sequela de Parmênides, propuseram a doxa como correlato do mundo sensível, acertaram errando, ou erraram acertando: o opinar não é forma de apreensão do sensível como tal, mas um esquema de seletividade, mediante o qual, o inteligível e o sensível se interseccionam o bastante para que se possa dizer que tal coisa é isto ou aquilo — mas o isto ou aquilo já estavam previstos pelo esquema seletivo. Demonstrável não é, certamente, que Platão desse modo tivesse pensado o correlacionamento da opinião e do sensível; mas das muitas centenas ou milhares de páginas que se têm escrito e se vão escrevendo acerca das origens da gnosiologia platônica nas preocupações políticas do filósofo, não se pode deixar de inserir que não andaria longe de sua cogitação a ideia de que há uma espécie de conhecimento profundamente radicado na ação; e como toda ação é seletiva, bem à sua vista estava a parcialidade de toda apreensão do sensível. Mais de vinte séculos de filosofia não decorreram em vão: hoje podemos passar do particular político ao geral humano. O que em mim, de um modo se mostra como corpo, e de outro, como alma, é, de ambos os modos, um órgão de seleção, intencionalmente aplicado na ação. Mas a ação é o prius: «Im Anfang war die Tat» (Fausto, I). A celebrada sentença de Bacon, «quantum scimus, tantum possumus», talvez, invertidos os seus termos, se torne mais verifica, ««quantum possumus, tantum scimus», e ainda mais se a trasladarmos do quantitativo para o qualitativo: «quale possumus, tale scimus». Nesta perspectiva, o horizonte aparece-nos como limite imposto à ação. Daqui poderia arrancar uma teoria dramática do conhecimento, da qual não discordaríamos, provisto que não se pretenda que, através da história, só um drama se tenha representado, tendo o homem por protagonista, e, como cenário projetado pela própria ação dramática, um mundo inteiramente submetido a seus propósitos de domínio incondicionado. Há um drama gnosiológico, para cada cultura bem diferenciada. No passado, muitos se representaram, em que os atores eram homens e deuses, e em que o mundo nem tanto se havia mundanado, nem o homem tanto se hominizado, nem os deuses tanto se deificado. À medida que as culturas vão sendo absorvidas pela Cultura, na mesma medida os dramas se universalizam no único drama que o Homem representa num Mundo que se define pela exclusão de Deus. Não cremos, todavia, que Deus esteja morto; nem sequer os deuses… Esperam no mais íntimo de nós, a hora de começar representando connosco o papel que lhes está designado no drama do imenso tédio que a Humanidade acabará por sentir de si mesma.