Lex Hixon, O Retorno à Origem
Plotino, que viveu no século três, descreve o que talvez seja a mais coerente metafísica espiritual tanto da tradição ocidental quanto da oriental. Encontramos, em Plotino e em seu professor Amônio Sacas, um fluxo de elevada sabedoria e prática contemplativa que deriva dos antigos pitagóricos, de Sócrates e da posterior cultura grega, atingindo o pensamento místico europeu. Heidegger, por exemplo, reflete claramente a transmissão intelectual e espiritual de Plotino, a linhagem neoplatônica, que tem sido sancionada pelos místicos cristãos e pelos filósofos transcendentais do Ocidente.
Os aspectos da busca espiritual e a natureza da Realidade Suprema foram questões abordadas por Platão, mas que Plotino desenvolveu completamente, embora seus textos não formem um sistema filosófico e sim um conjunto desconexo de discursos fundamentados em conversas mantidas com vários estudantes de filosofia. Plotino não foi apenas um pensador independente, envolvido com suas especulações pessoais, e sim um iniciado disciplinado na tradição contemplativa personificada por seu professor, Amônio. Plotino, aos 27 anos, após ter viajado para Alexandria em busca de um autêntico professor de filosofia, que pudesse atuar como um guia espiritual mantendo ao mesmo tempo os mais elevados padrões intelectuais, conheceu Amônio. Essa pessoa enigmática, à semelhança de Sócrates, não escreveu nada, mas personificou, na sua própria realização espiritual, a interpretação esotérica do pensamento de Platão que florescera em Alexandria entre os vários ensinamentos de sabedoria do judaísmo, cristianismo e gnosticismo grego. Embora houvesse em Alexandria acesso à cultura indiana através do intercâmbio comercial existente entre o Egito e o Extremo Oriente, o neoplatonismo parece ter-se desenvolvido, bastante independente da espiritualidade indiana, como um místico florescer do Caminho grego.
No momento em que Plotino encontrou Amônio, teve a certeza de que era a pessoa que estivera procurando em vários círculos filosóficos. Amônio transmitia mais do que uma simples luminosidade. O poder de realização irradiava-se diretamente dele para seu aluno Plotino. Com referência à Realidade Suprema e como o estudante vem a conhecê-la, Platão escreve na sua Sétima Epístola: Certamente não elaborei qualquer obra a esse respeito, pois não há como colocá-la em palavras como outros estudos. O relacionamento com ela deve vir após um longo período de instrução e companheirismo, quando de repente, como uma chama inflamada por uma fagulha, ela é gerada na alma, e a mente se inunda de luz.
Iremos analisar basicamente essa questão da Realidade Suprema, que Plotino denomina o Um, mas vamos estudar também algumas das suas fecundas percepções intuitivas sobre a estrutura da dimensão relativa, que ele considera como a eterna caminhada da Existência a partir do Um. Uma vez que Plotino jamais filosofou sistematicamente e sim abordou o Um de vários modos e a partir de várias direções, vamos seguir a livre associação do seu pensamento, ao invés de organizar as fagulhas da sua percepção intuitiva sob qualquer forma rígida.
Para Plotino, o Um não é uma abstração, e nem um Absoluto vazio ou estático. O Um é o Poder, extremamente simples e contudo repleto de potencialidade, que gera a Existência e os vários planos de Existência — não física ou psiquicamente, porém mais como um princípio matemático que gera uma série de números. Ao contrário de uma fórmula matemática, contudo, o Um é um princípio vivo e a série infinita de seres que Ele origina são radiantemente vivos. Nem tampouco é a Existência unidimensional, como uma série matemática, e sim uma emanação simultânea de seres em vários planos distintos de existência, cada um dos quais expressa, num tom metafísico diferente, a força única do Um. O Um está mais vivo, por exemplo, do que a energia vital dos seres orgânicos, que são Suas emanações num plano menos primordial de existência. Plotino também se refere ao Um como o Bem, a base de toda preocupação humana com o valor, mas, para Plotino, o Um não pode jamais ser um objeto de pensamento racional. O Um não é uma categoria filosófica e sim uma realidade espiritual, que Plotino percebeu diretamente como a natureza intrínseca de todos os seres e de todos os planos de Existência.
Plotino se refere ao Um como Amor, embora o Um não possua individualidade. O Um não é o Deus pessoal, a quem Plotino descreve reverentemente como a Alma Cósmica, uma emanação do Um num nível mais primordial de Existência do que o universo físico. O Um é totalmente primário — mais primário, até, do que a própria Existência. Em virtude dessa qualidade primária, não podemos fazer qualquer afirmação literal a respeito do Um. Plotino adverte: Ao se falar do Um, “por assim dizer” precisa ser compreendido em cada termo. A via negativa, que não afirma nada positivo a respeito do Divino, mas apenas o que o Divino não é, foi introduzida na teologia mística ocidental vinda de Plotino. Embora Plotino tente amiúde revelar vislumbres positivos do Um por meio da sugestão, em vez da afirmação, ele observa no modo da via negativa: Toda investigação diz respeito ao que uma coisa essencialmente é, ou à sua qualidade, ou à sua causa, ou ao fato da sua existência, mas nada disso se aplica ao Um. Plotino avança de tal modo na via negativa a ponto de chamar o Um de aquilo que não existe. O Um é excessivamente simples, excessivamente definitivo, excessivamente primordial para expressar qualquer condição de existência ou para possuir qualquer qualidade, embora a existência e todas suas qualidades emanem do Um. O Um não é causado por nenhuma força, nem mesmo por Si mesmo, porque Ele não existe da maneira vigorosa e substancial pela qual vivenciamos a existência. É impossível objetivar o Um, porque ele é radicalmente simples — mais simples, até, do que a unidade. Plotino ensina: Podemos chamá-lo de “Um” desde que nos lembremos que Ele não é algo que possua o atributo da unidade.
O Um não é nem mesmo um. Como devemos prosseguir diante de tal impasse? Responde Plotino: Não devemos fazer qualquer investigação a respeito Dele porém simplesmente tocá-lo em nosso intelecto e aprender que é uma profanação atribuir quaisquer termos a Ele. Plotino encara o intelecto, denominado nous em grego, não como o processo gradativo do pensamento usual ou da investigação racional e sim como a dimensão permanentemente iluminada da consciência humana, que leva em conta a intuição imediata. Nous é o modo misterioso de conhecimento que prefigura conjuntos ao invés de investigar partes, e é por conseguinte através do intelecto iluminado que tocamos o Um, que é o princípio de toda a globalidade. A linguagem não precisa desaparecer inteiramente nessa dimensão de visão intelectual. Existe a profanação ao Lhe atribuirmos termos somente se imaginarmos esses termos como sendo literais ou restritivos. Para Plotino, a visão intelectual lembra a experiência Zen da Iluminação repentina, que penetra imediatamente na natureza intrínseca da consciência, tocando-a em vez de pensar nela. Este é contudo um processo sutil e árduo nos caminhos de sabedoria, tanto do Zen quanto de Plotino.
Plotino rejeita qualquer abordagem relativa ao Um que se baseie no pensamento usual, que sempre tende a nos separar do Supremo. Nas palavras de Plotino: Investigamos Sua presença e Sua existência como se Ele fosse um estranho, projetado no nosso “lugar” imaginário a partir de uma posição muito profunda ou muito elevada. Poderíamos imaginar que o Um, por Ele ser absoluto, deve estar espiritualmente ou mesmo espacialmente distante de nós—que precisamos transpor algum abismo intransponível para tocar o Um ou que o Um precisa descer na nossa mente para que possa Se revelar. Esquecemo-nos de que o poder absoluto do Um inclui a imanência absoluta, ou onipresença. Por conseguinte, o Um está aqui e agora, não é um estranho, nem mesmo um outro, e sim a própria natureza daquilo que somos. E Plotino fala da existência mundana como nosso lugar imaginário, porque não estamos fundamentalmente situados no espaço e o Um também não está. Não temos realmente um lugar, porque somos essencialmente apenas o Um derramando-Se na experiência.
Plotino ensina que o Um transborda espontaneamente como vários planos e níveis de Existência. Ele emprega os verbos transbordar, emanar e prosseguir para esse processo intemporal que é mais metafísico do que físico. O nível mais primário, ou mais elevado, de Existência é a Esfera da Visão Intelectual. Nesse nível não existe um universo físico, nem mesmo esferas celestiais. Existem apenas as sementes vibrantes e quase musicais a partir das quais as almas e depois seres orgânicos prosseguem para planos de existência menos primordiais. Esses Arquétipos se interpenetram harmoniosamente, livres da estrutura do tempo e do espaço. A qualidade musical dessa esfera metafísica jorra da sua atividade intrínseca de louvar o Um. Segundo Plotino, todas as emanações do Um, por natureza, se voltam para contemplar ou louvar sua Origem.
Uma vez que o Um é poder ilimitado, esse transbordamento continua num segundo e inferior plano de Existência, a Esfera da Alma. Ainda não existe o universo físico, mas surgem agora almas individuais, vivendo em comunhão, compartilhando a vida transcendental ou celestial, na eterna contemplação do Um. O transbordamento continua e finalmente começa a se dissipar na sombra da Existência, que é a não-existência. Aqui o universo físico e suas formas de vida se configuram como a interseção, por assim dizer, da Existência com a não-existência. Esta é a terceira emanação do Um, a Esfera da vida. Os seres conscientes, que evoluem naturalmente no universo palpável, são raios da Esfera da Alma que converge através de várias estruturas biológicas. A Esfera da Alma abrange a Esfera da Vida e, por conseguinte, a vida orgânica não existe fora da Alma.
Pode-se imaginar a marcha da Existência como um movimento do centro para fora, como os anéis de crescimento de uma árvore. Porém, essa marcha metafísica pode ser compreendida com maior precisão como sendo uma emanação para dentro, na direção do ponto de desaparecimento da pura não-existência. Desse modo, o Um é visto como abrangendo Suas emanações. O universo físico é a mais restrita emanação do Um, e a mais próxima, por assim dizer, da não-existência. Não obstante, a vida orgânica é ainda uma emanação do Um, e as formas de vida física se voltam, naturalmente, para contemplar sua Origem. Esse voltar para se expressa através da evolução de todos os seres sensíveis e por meio daquilo que os seres humanos vivenciam como a busca mística.
Quando Plotino fala de nossas almas, ele se refere à Esfera da Alma, e não a algum lugar dentro do corpo ou do universo. Plotino escreve: Não é a Alma que está “dentro” do universo, e sim o universo que está “dentro” dela: o corpo não é um “lugar” para a Alma. Analogamente, o Um não está dentro de qualquer ser ou fenômeno, mas todos os fenômenos estão dentro do Um, ou Consciência Suprema. O mito científico moderno, ao contrário, imagina que a consciência é produto de uma evolução física enigmática. Nossos cientistas afirmam que nuvens maciças de energia se condensam em galáxias, e de reações químicas evoluem sementes moleculares que, eventualmente, desenvolvem consciência como animais e seres humanos. Plotino diria que essa visão é o oposto do que realmente ocorre. A realidade primária não é a energia física e sim a Consciência, o Um. Dentro do Um, embora não num sentido espacial, desenvolvem-se vários planos de Existência. No mais limitado desses planos surgem as nuvens espiraladas de energia galática que chamamos de universo, onde estruturas biológicas se desenvolvem para expressar o Um, ou Consciência. Para que possamos vislumbrar essa percepção intuitiva, é preciso que haja uma mudança na nossa perspectiva comparável a uma inversão de figura e plano.
Em vez de imaginar os seres humanos como pontos insignificantes de consciência no vasto universo físico, precisamos compreender que a Consciência, que os seres humanos realmente são, é o Um, que contém galáxias dentro de si, do mesmo modo como se diz que a mente contem pensamentos.
Plotino sugere que quando a alma encarna, que é a expressão usual, porém inexata, não existe de fato uma descida da Esfera da Alma, nenhuma contração dentro de um sistema nervoso particular, porque a alma não é espacial. Plotino esclarece que nossas almas vivem, agora e sempre, em planos de Existência mais elevados, ou mais primordiais. Esses planos superiores não contém nenhuma multiplicidade espacial, apenas a multiplicidade, destituída de espaço e que tudo permeia, dos Arquétipos espirituais, que fornecem princípios singulares para cada alma.
A manifestação das almas no plano físico pode ser assim retratada. Nosso Arquétipo, talvez fertilizado por outros Arquétipos, dá à luz uma criança específica, ou raio de alma, que passa a se identificar com nosso corpo-mente atual. O Arquétipo, como Mãe, passa a envolver-se profundamente com Seu filho, talvez um entre muitos em várias galáxias. Mas quando a criança se desenvolve e começa a compreender toda a extensão da sua natureza como o Um, a Mãe, ou Arquétipo, retorna à Sua Vida universal, na qual a alma particular agora participa totalmente. O ser humano Iluminado desenvolve assim uma consciência no nível do seu Arquétipo, que é às vezes encarado como uma Forma Divina. Muitos seres humanos são ainda crianças pequenas, quase que totalmente alheios aos níveis de Existência mais primordiais do que seu corpo-mente particular.
Do mesmo modo como nossa alma contempla seu Arquétipo, esse Arquétipo por sua vez contempla o Um, que é a sua Origem. Plotino sempre volta ao Um como a natureza intrínseca de todo o curso da Existência. O corpo-mente está na alma, a alma está no Arquétipo, o Arquétipo está no Um, mas o Um não está situado numa realidade mais abrangente. Plotino explica: O Um não está em absolutamente nada e, por conseguinte, nesse sentido “em lugar nenhum”… Ele não está, portanto, longe de coisa alguma, embora não esteja em nada. O Um não está situado em lugar algum, e por esse motivo não pode ser separado de nós pelo mais insignificante espaço físico ou psíquico. Ele está totalmente próximo e acessível.
O Um, embora não esteja caracterizado pela substância ou pela existência, expressa um poder ilimitado, não um poder físico ou psíquico e sim a fertilidade metafísica de envolvimentos ou horizontes eternamente em expansão. Plotino escreve: O Um precisa ser considerado infinito, não por extensões ilimitadas de tamanho ou número, e sim pela qualidade ilimitada do seu poder. O processo cósmico através do qual a energia e, eventualmente, a matéria são criados é a menor fibra do poder gerador do Um. Mas esse poder não possui objeto, nem direção. Nas palavras de Plotino: O Um, perfeito porque não busca nada, não precisa de nada, transborda, por assim dizer, e Sua superabundancia faz alguma coisa, por assim dizer, diferente de Si Mesmo, que ê a Existência Esse transbordamento do Um é, intrinsecamente, apenas o Um. E o Um também não está de modo algum consciente de ter transbordado e gerado o que denominamos Existência. Plotino, contudo, não desenvolve a noção indiana do maya, o senso de que a Existência manifestada é de algum modo ilusória. Ele pode considerar que existe uma ilusão implicada na separação de seres na esfera do espaço–tempo, que é a interseção da Existência e da não-existência, mas as esferas primordiais da Existência, onde as estruturas arquetípicas se interpenetram destituídas de espaço e de tempo, são para Plotino completamente reais. Essas esferas são tão reais quanto o Um, porque elas são o Um. As esferas de Existência, que são o Um enquanto ele eternamente transborda, não podem jamais ser recolhidas, porque o Um é a superabundância do Poder. Embora o Um emane assim inevitavelmente como Existência, Ele não pode ser definido em função da Existência, nem pode ser limitado à Existência. Todavia, os seres não são separados do Um, que é a própria existencialidade deles. Como Plotino observa: …é pelo Um que todos os seres são seres.
O pensamento visa à multiplicação de possibilidades, ao passo que a visão intelectual de Plotino avança na direção da simplicidade.
Plotino escreve: O Um não é pensar, pois não existe nenhuma diversidade Nele. Ele Mesmo não pensa. A possibilidade existe apenas para o pensamento. Não existem possibilidades para o Um. Até mesmo a noção de infinitas possibilidades é um conceito limitante à luz do Um, que não pensa em Si Mesmo, muito menos a respeito de possibilidades. Plotino comenta sobre essa ausência do Um, a respeito de qualquer relação Consigo Mesmo: Não deveríamos, na verdade, nem mesmo falar de “sua própria presença”. O Um não tem consciência de Si Mesmo de qualquer modo primordial, pois não existe nada sobre o que refletir ou contra o que refletir. As esferas da Existência não são vivenciadas pelo Um como diferentes de Si Mesmo. A diversidade, ou a separação do Um, só é vivenciada por seres como nós, que se manifestam na esfera da energia física, onde, em decorrência da interação da Existência com a não-existência, surge a ilusão da separação. Continua Plotino: Não deveríamos classificar o Um como um “ser pensante” e sim, de preferência, simplesmente como “consciência”, pois a consciência não pensa. O Um, ou consciência primordial, não é um processo de articulação, não é consciência de, mas sim Consciência sem qualquer objeto ou sujeito. Não podemos atribuir ao Um quaisquer idéias convencionais a respeito de consciência, porque nossa consciência relativa funciona como consciência de. Mas devemos nos lembrar de que essa simplicidade primordial da Consciência Suprema não é de algum modo estéril, ou improdutiva. O Um é a riqueza que se torna articulada na nossa consciência relativa, como pensar e amar.
Plotino sempre fala, em termos figurados, do Um, porque, conforme nos lembra, não há nada que possa ser atribuído ao Um. A linguagem figurada de Plotino é muitas vezes contrastante e até mesmo conflitante, de um discurso para outro. Este fato não nos deveria causar surpresa, pois Plotino estava descrevendo uma Realidade que ele sabia não poder ser descrita. A linguagem de Plotino, contudo, possui o poder de despertar a linguagem intelectual que toca o Um — em outras palavras, a consciência primordial que é o Um. Exercitando essa atividade livre de linguagem figurada, Plotino descreve, ocasionalmente, nosso voltar ou despertar para o Um, através da metáfora do Um observando a Si Mesmo, embora não esteja implícita nenhuma consciência de si mesmo em qualquer sentido corriqueiro. Ele escreve: O Um possui somente uma espécie de intuição simples orientada para Si Mesmo. Mas como Ele não está de modo algum distante e nem é diferente de Si Mesmo, que outra coisa essa observação de Si Mesmo pode ser, além de Si Mesmo? Ramana Maharshi nos ensina a perguntar, Quem Sou Eu? Jamais obtemos uma resposta a essa pergunta, porém simplesmente paramos de perguntar. Por que paramos? Porque percebemos que, nos termos de Plotino, a observação intuitiva de Si Mesmo é Si Mesmo. Essa observação intuitiva, ou o Quem Sou Eu?, nada mais é do que a Consciência Suprema que estamos buscando ao longo do caminho da sabedoria. Isso não é, contudo, como revelar a resposta de um quebra-cabeças ou de um enigma. Essas palavras são uma mera escrita cifrada, até que vivenciamos o lampejo de iluminação, no qual a indagação se abre, transformando-se na flor da afirmação infinita.
A observação intuitiva do Um com relação a Si Mesmo é seu próprio transbordamento como Existência, cuja natureza é a indagação ou busca, que finalmente percebemos como o caminho místico. Plotino esclarece: O Um nasce, por assim dizer, para Seu próprio interior como se apaixonado pela luz clara que é Ele Mesmo, e Ele é o que Ele ama. Sentimos a sublimidade do amor na nossa experiência humana porque o Um ama enquanto transborda, embora Seu amor seja livre da distração de qualquer sujeito ou objeto separado, sendo por conseguinte infinitamente mais intenso do que o amor humano comum. Através do Seu amor, o Um nasce para Seu próprio interior. Podemos ainda nos prender à noção de que o Divino projeta a criação para pra de Si Mesmo, mas o que realmente ocorre é insinuado na linguagem mística da Cabala, que diz que uma fenda de espaço negativo, ou não-existência, abre-se misteriosamente dentro da Plenitude Divina a fim de que haja lugar, por assim dizer, para que o universo manifestado tome forma dentro do Divino. Não obstante, todas as formas que se manifestam no interior do Um são apenas, nas palavras de Plotino, a luz clara que é Ele Mesmo. Existe apenas o Um.
O Um não é considerado por Plotino como estático, ou em repouso. O Um é a intensa atividade ou poder superabundante que emana como Existência. Mas não devemos confundir essa atividade do Um com a ação da energia física. Plotino propõe: Essa atividade é uma espécie de despertar, sendo aquele que desperta apenas Ele Mesmo; um eterno despertar de superintelectualidade; o Um é como Ele se desperta para ser: o despertar está além da existência, além da essência e além da vida consciente. Embora Ele seja o eterno despertar além da Existência, o Um não é separado. Plotino observa: Ele tem vida em Si mesmo e todas as coisas em Si Mesmo. E declara, tentando explicar a natureza da atividade absoluta do Um: O Um é uma atividade, não possuindo contudo nenhuma função. Enquanto que o conceito de função é o foco central do pensamento e da ação humana usual, o Um é destituído de função. O transbordamento do Um como Existência não tem nenhuma função ou objetivo. Os místicos budistas encaram o Vazio como ilimitadamente criativo porque sua própria vacuidade, ou ausência de objetivo, não impõe qualquer obstáculo à manifestação. Seguindo a mesma linha de pensamento, Plotino faz o seguinte comentário a respeito do Um: É porque nada existe Nele, que todas as coisas provêm Dele; Ele é o poder que gera as coisas ao mesmo tempo que repousa em Si Mesmo sem sofrer qualquer diminuição. O Um não possui substância, e isso é sua perfeita plenitude, que não pode ser reduzida.
O Um não tem nenhuma participação em qualquer manifestação. Como esclarece Plotino: Um princípio não precisa do que vem depois dele e o princípio de todas as coisas não precisa de nenhuma delas. A partir do princípio de uma série matemática, podemos gerar indefinidamente números. Mas o princípio não precisa gerar nenhum desses números, embora implicitamente os contenha. Todos os seres são números que vibram de maneira singular, contidos pelo Um, assim como por um princípio matemático ativo. Mas o princípio matemático não causa os exemplos que o ilustram. Plotino observa: Mesmo quando chamamos o Um de Causa, não estamos afirmando nenhum atributo Dele e sim de nós mesmos, porque nós recebemos algo Dele enquanto Ele existe Nele Mesmo. O Um não tem qualquer experiência de ser a nossa causa, e contudo, do nosso ponto de vista, como exemplos individuais do Um, nós instintiva, porém inadequadamente, pensamos no infinito Poder do Um como algo causal. Prossegue Plotino: Ele não precisa das coisas que passaram a existir a partir Dele, deixando-as de lado por não precisar de nenhuma delas e por ser o mesmo que era antes de fazê-las existir; Ele não teria se importado se elas não tivessem existido. O curso da Existência é no entanto inevitável, considerando-se o que Plotino denomina, em linguagem figurada, a generosidade do Um, que podemos imaginar como uma condição permanente de supersaturação. Mas o transbordamento superabundante do Um é ainda, simplesmente, o Um.
Nesse ponto, o estudioso devocional poderá reclamar Deus não se importa com o fato de Eu contemplá-Lo? Plotino responderia que o Um não é o Deus pessoal. A Alma Cósmica é Deus, e realmente se interessa em que os seres humanos se voltem conscientemente para o Um. Esse zelar Divino e retorno humano são o modo natural da Existência em si. Todavia, o Um permanece no âmago do zelo e do retorno da Existência, sem que Ele Mesmo se preocupe ou se volte. Assim sugere sutilmente Plotino: O Um na Sua solitude não pode conhecer nem ignorar qualquer coisa. O Um não pode ter consciência das nossas preocupações pessoais mas tampouco pode ignorá-las, porque Ele é elas, como Ele é todo o curso e o retorno contemplativo da Existência. A natureza radicalmente transcendente do Um não faz com que se afaste nem um pouco de qualquer fenômeno. Como esclarece Plotino: O Um é imanente exatamente por causa da Sua transcendência. O Um transcende a própria Existência, mas Ele não está além de qualquer vida ou qualquer preocupação, por microscópica que seja. O Um transcende a transcendência.
Os seres humanos são, na linguagem de Plotino, o Amor do Um pela Luz Clara que Ele é. Permanece, contudo, o quebra-cabeças da aparente ignorância humana relativa ao Um. Plotino explica: Não nos afastamos realmente Dele, porque Ele está lá; nós não “vamos” a lugar algum, permanecendo presentes para Ele e contudo voltando nossas costas para Ele. Segundo o ensinamento de Ramana Maharshi, a Iluminação é simplesmente admitir que já estamos Iluminados, que já somos o Um. Isso implica uma revolução na nossa atitude, uma volta àquilo a que voltamos as costas. Essa volta é tão simples e natural quanto subir à superfície em busca de ar depois de mergulhar na água, mas requer uma intensa preparação espiritual, porque nos tornamos desorientados nas águas escuras do tempo e do espaço. Nas palavras de Plotino: O Um está presente apenas para aqueles que estão preparados para Ele. Essa preparação, para Plotino, envolve anos de pensamento contemplativo a respeito do Um, sob a orientação e inspiração de um mestre que esteja conscientemente arraigado no Um. Essa disciplina espiritual pode ser basicamente intelectual, na visão de Plotino sobre o intelecto iluminado, e não precisa ser enfocada através de qualquer compromisso religioso de natureza devocional.
Quer no caminho da devoção ou da sabedoria, contudo, a preparação espiritual envolve a canalização do anseio básico pelo Um que anima todos os seres. Plotino observa: Os homens esqueceram Aquele que desde o início desejam e por quem ainda anseiam. Nós manifestamos naturalmente esse anseio supremo, pois a própria natureza do nosso ser, como Existência, é se voltar e contemplar o Um. Essa contemplação está ocorrendo mesmo agora sob a forma da nossa vida corriqueira. Plotino explica: O Um está presente mesmo para os que dormem e não surpreende aqueles que o vêem em qualquer ocasião, porque Ele está sempre lá. A Iluminação, ou o despertar como o Um, não é uma experiência assombrosa ou sensacional, porque o Um está sempre presente como o centro de toda nossa consciência. Existe, na verdade, um ponto no processo da Iluminação no qual entramos em êxtase em decorrência da redescoberta do Um, mas essa excitação acaba por desaparecer quando entendemos, com mais clareza, que o Um está totalmente presente em todo estado de consciência, transcendental ou mundano.
A experiência extática é natural ao processo da Iluminação, quer se expresse através da devoção ou por meio da bem-aventurança do conhecimento místico. O êxtase, porém, vem a se dissolver na consciência primordial. Plotino identifica o êxtase com o amor à Beleza. A Beleza é encarada pela espiritualidade da cultura grega como uma Divindade libertadora, que se venera com o oferecimento da beleza humana a fim de ser aleado na esfera extática da Beleza Divina. Plotino insiste em afirmar que esse êxtase só pode ser subordinado à Iluminação, ou ao despertar como o Um: O amor apaixonado pela Beleza, quando surge, causa dor, porque é preciso tê-la visto para desejá-la. A Beleza é considerada secundária porque esse amor apaixonado por ela é secundário. O desejo mais antigo e despercebido pelo Um proclama que o Próprio Um é mais antigo do que a Beleza e a antecede. Para Plotino, o amor apaixonado pelo Divino ou a bem-aventurada contemplação dos Arquétipos são secundários, porque a embriaguez e o assombro que eles causam sugerem a separação, ou dualidade. O Um não gera essa reação emocional. Escreve Plotino: O Um está suave e graciosamente presente para qualquer pessoa quando esta o deseja; a Beleza traz o assombro, o choque e o prazer misturados com a dor. O despertar como o Um não pode, por conseguinte, ser encarado como uma experiência extática, acessível apenas a um estado especial de consciência, sendo, ao contrário, um despertar que permeia igualmente todos os estados de consciência.
A Iluminação significa despertar como o Um, em vez de conhecer ou ver o Um da maneira como um sujeito conhece ou vê um objeto. Esse despertar transcende todos os níveis de experiência do mesmo modo como, ontologicamente falando, o Um transcende todos os níveis de Existência. As infinitas variedades de experiência extática ainda estão na esfera da Beleza, ou Existência. Contudo, por ser imanente em virtude de Sua própria transcendência, o Um não está além ou fora das experiências extáticas. O Um, ou Consciência Suprema, é a base de toda experiência. Ser consciente de que somos Consciência não é uma experiência isolada.
E, contudo, a preparação para essa não-experiência é desafiadora. Em virtude da natureza totalmente primordial ou simples do Um, também precisamos ser simples. A maneira como percebemos a complexidade deve ser explorada em profundidade, tornando-se, pouco a pouco, transparente para o Um. Plotino chama o despertar como o Um de vôo do Solitário para o Solitário. O mestre Zen fala de flores vermelhas florescendo vermelhas. A repetição em cada uma dessas declarações místicas expressa inteiramente a natureza circular do Despertar. Essa circularidade se condensa na afirmação primordial É é É, que por sua vez desaparece na sua Origem — o Um — revelando todo o drama da Existência como o Um solitário.
O caminho da sabedoria seguido por Plotino não é um sistema filosófico e sim uma poderosa senda de iniciação que de fato faz com que despertemos como o Um. Os escritos de Plotino fornecem inspiração para a efetiva prática contemplativa. Eles não se propõem a atuar como um exercício acadêmico em especulação metafísica. Todos somos capazes, no momento, até certo grau, de alcançar a visão intelectual que Plotino pretende.
Passarei a descrever um exemplo dessa visão, uma ascensão até o Um que aconteceu comigo através da imaginação espiritual, enquanto eu meditava com Mãe Serena, uma professora rosacruciana, de oitenta anos, mergulhada na tradição esotérica ocidental, tão profundamente enriquecida pela influência de Plotino. Existe uma nítida diferença entre o caráter do devaneio e o surgimento inesperado de imagens intensamente espirituais durante a meditação. Essas visões ou visualizações espontâneas só aconteceram comigo raramente, em cerca de doze anos de prática contemplativa. Essas imagens representam uma tentativa da mente, funcionando além do controle voluntário, de transformar a percepção espiritual direta em formas e relacionamentos reconhecíveis. Plotino usa ocasionalmente a metáfora da ascensão espiritual embora, estritamente falando, não exista nenhuma distância entre nós e o Um que precisamos transpor.
Enquanto eu ouvia Mãe Serena ler nomes para a cura, sentado na capela onde ela meditava diariamente há mais de cinqüenta anos, tornei-me gradualmente consciente de que eu estava me elevando na consciência. Enquanto subia, ainda conseguia ouvir Mãe Serena orando pela saúde e pela paz do mundo, e permaneci levemente consciente do ruído dos caminhões no alto West Side da cidade de Nova York. Esta ascensão espiritual transformou-se vividamente na imagem de um elevador. O elevador passava por vários andares, esferas celestiais nas quais eu poderia ter parado para explorar, mas o veemente desejo de vislumbrar seu destino final me manteve nesse elevador imaginário. Por fim, a cabina chegou ao último andar, as portas se abriram, e saltei num reino de luz dourada. Meu corpo era da mesma cor e natureza que essa luz. Eu não flutuava, mas estava totalmente consciente desse corpo dourado, que reagia exatamente como o meu corpo comum. Eu também tinha consciência de estar caminhando sobre uma superfície. Senti intuitivamente que aquele não era o topo, ainda não era a última visão. Vendo uma escada que subia em círculos e se perdia na intensidade de luz dourada, comecei a subir, percebendo que enquanto subia a luz tornava-se mais densa. Minha noção de estar caminhando sobre uma superfície comum começou a se dissipar. Meu corpo fundiu-se com a luz, e logo não havia mais corpo, apenas a intensidade dourada. Eu ainda tinha consciência de mim mesmo como um centro individual de consciência, embora não houvesse mais agora nenhuma sensação de ainda estar subindo, porque as metáforas físicas haviam-se tornado irrelevantes. Minha consciência estava pendurada como um papagaio no céu. Eu não tinha a menor idéia de como prosseguir, mas sentia que havia mais. Nesse momento, uma voz reveladora, ao mesmo tempo clara e suave, perguntou-me se eu realmente desejava conhecer o que é Supremo. Eu assenti.
O movimento seguinte pareceu uma osmose através de uma membrana e ocorreu espontaneamente, sem planejamento ou esforço. Sem nenhuma sensação de impetuosidade, lá estava o outro lado da membrana. Tudo estava claro. A pesada densidade dourada da Existência desaparecera, dissipando-se como se se tivesse passado diretamente da umidade do verão para a pureza do outono. A luz dourada havia gerado um certo arrebatamento ou êxtase, mas agora nada mais disso havia — somente um claro esplendor natural e flutuante. Esse esplendor era tão completo que não havia lugar para o Eu; entretanto, mesmo na ausência de um Eu particular, a consciência estava totalmente presente. Essa presença ou esplendor intenso e absorvente não era uma substância mas simplesmente claridade de consciência. Essa claridade parecia branca, ou levemente opaca, porque não havia nada a ser visto através dela que a fizesse parecer transparente. E porque não havia nada a ser visto, também não havia a impressão de distância ou vastidão — apenas a sensação de completude. Essa consciência primordial é o que Plo-tino chama de o Um.
Depois de um intervalo de simples radiância que nada revelou além de si mesmo, surgiu a pergunta: Há quanto tempo você está aqui? Essas palavras, parecendo insinuar-se de um outro nível de consciência, despertaram uma imediata sensação de riso, porque era deliciosamente óbvio que nenhum conceito desse tipo cabia no contexto. É preciso que haja alguma seqüência de eventos para que se possa julgar a passagem do tempo: mas, se nada em absoluto estiver acontecendo, não pode haver decurso de tempo ou até mesmo um observador. Depois de outro intervalo imensurável, surgiu uma segunda pergunta: Por que se deveria deixar essa Luz Clara? Como se em resposta à indagação, uma bolha apareceu, flutuando através do esplendor, lembrando as bolhas que as crianças sopram dos anéis que mergulham no sabão. Quando a luz do sol brilha através das bolhas de sabão, as cores do arco-íris aparecem. Do mesmo modo, dentro dessa bolha estendia-se um arco-íris, que se revelava como a total estrutura da Existência — todos os planos, todas as almas, todos os seres sensíveis, civilizações e galáxias. Toda a estrutura era completamente insubstancial. A bolha, instável enquanto flutuava, mudava constantemente de formato, dando a impressão de que poderia estourar a qualquer momento. Sua delicadeza era comovente. E a inconsútil radiância do Um brilhava diretamente através dessa bolha transparente de Existência. Jorrou então uma corrente de solicitude amorosa, solicitude pelos seres desses vários planetas e planos de luz do arco-íris. Essa solicitude tornou-se cada vez mais intensa, atingindo um clímax. Encontrei-me, de repente, mais uma vez no reino dourado, compreendendo que eu fora levado de volta, através da membrana, para a bolha flutuante que é a Existência.
Meu senso de individualidade ressurgiu, tão logo percebi a luz dourada. Sabia, contudo, que fora devolvido à Existência não pelo apego à minha individualidade e sim através do compromisso com toda a vida. Desci a escada dourada e entrei no elevador. Havia dois grandes botões, com pequenos botões entre eles. O grande botão lembrava o sol e o outro uma fotografia da terra tirada do espaço exterior. Escolhi a terra e voltei, ainda percebendo a radiância do Um reluzindo como esse universo de arco-íris transparente. Mais uma vez fiquei tenuamente consciente de Mãe Serena lendo os nomes daqueles para quem estava enviando a luz da cura e o amor. Talvez, em virtude da sua presença, tão profundamente envolvida na atividade da compaixão, eu fora capaz de compreender o papel profundo que o amor compassivo desempenha no processo espiritual. Eu conseguia agora entender como a visão mística tradicional da insubstancialidade do universo e dos seus seres, este mero arco-íris dentro de uma bolha, podem coexistir com o amor pelos seres e com o compromisso com o universo. Eu também conseguia compreender como, para Plotinó, as esferas de Existência procedem, inevitavelmente, da superabundância do Um, porque a bolha flutuante, com sua estrutura de arco-íris de Existência, foi gerada simplesmente a partir da supersaturação da consciência pura por ela mesma. Pude ainda compreender o que Plotino quer dizer quando comenta: O Um nasce, por assim dizer, para Seu próprio interior como se apaixonado pela luz clara que é Ele Mesmo, e Ele é o que Ele ama. Eu não havia retornado na bolha da Existência para nenhum indivíduo. Essa aparente jornada para dentro e para baixo foi simplesmente o eterno transbordamento ou emanação do Um como Existência ou Amor.