Essa parte, observou Cebete, também me parece razoável. Porém o que afirmaste antes, sobre a disposição do filósofo para morrer, é um verdadeiro contra-senso, Sócrates, se estiver certo o que dissemos há pouco, que Deus cuida de nós e que somos propriedades dele. Que os indivíduos mais sábios se insurjam contra semelhante tutela e procurem evitá-la, quando a exercem, precisamente, os deuses, os melhores dirigentes, é o que não chego a compreender. Pois ninguém ousará dizer que saberá cuidar melhor de si mesmo, uma vez em liberdade. Um indivíduo insensato poderia raciocinar dessa maneira, por achar bom fugir do amo, sem considerar que não se deve fugir do bem, mas ficar junto dele o maior tempo possível. Foge por carecer de senso. O indivíduo inteligente, pelo contrário, só deseja continuar junto de quem lhe seja superior. Por isso, Sócrates, o certo é, precisamente, o oposto do que foi dito há pouco: aos sábios é que fica bem insurgir-se contra a ideia da morte, e aos insensatos, exultar ante essa perspectiva.
Ao ouvi-lo assim falar, quis parecer-me que Sócrates se alegrava com a agudeza de Cebete; depois, voltando-se para nosso lado, falou: Cebete anda sempre à cata de argumentos, sem aceitar de pronto a opinião dos outros.
Ao que Símias observou: Porém quer parecer-me, Sócrates, que há bastante senso nas palavras de Cebete. Não se compreende, de fato, que indivíduos verdadeiramente sábios fujam de amos melhores do que eles e se alegrem com essa liberdade. A meu ver, o argumento de Cebete vai dirigido contra ti, por aceitares à ligeira a ideia de deixar-nos, e também aos amos cuja superioridade és o primeiro a proclamar.
Tens razão, observou. Pelo que vejo, sois de parecer que preciso defender-me dessa acusação, como o fiz no tribunal.
Perfeitamente, respondeu Símias.
Pois que seja, disse. Vejamos se diante de vós outros minha defesa saíra mais convincente do que a feita na frente dos juízes. O fato, Símias e Cebete, prosseguiu, é que se eu não acreditasse, primeiro, que vou para junto de outros deuses, sábios e bons, e, depois, para o lugar de homens falecidos muito melhores do que os daqui, cometeria uma grande erro por não me insurgir contra a morte. Porém podes fiar que espero juntar-me a homens de bem. Sobre esse ponto não me manifesto com muita segurança; mas no que entende com minha transferência para junto de deuses que são excelentes amos: se há o que eu defenda com convicção é precisamente isso. Esse motivo de não me revoltar a ideia da morte. Pelo contrário, tenho esperança de que alguma coisa há para os mortos, e, de acordo com antiga tradição, muito melhor para os bons do que para os maus.
Como assim, Sócrates, perguntou Símias; com semelhante convicção queres deixar-nos sem no-la dar a conhecer? Eu, pelo menos, acho que se trata de algo de grande relevância para nós todos. Ao mesmo tempo, com isso farás a tu a defesa, se com o que disseres conseguires convencer-nos.
É o que vou tentar, continuou; porém primeiro vejamos o que o nosso Critão há tanto tempo quer dizer-me.
Trata-se apenas do seguinte, Sócrates, falou Critão: é que há muito vem insistido comigo a pessoa encarregada de dar-te o veneno, para avisar-te de que deves conversar o menos possível. Conversa muito animada esquenta, é o que ele afirma, e isso prejudica a ação da droga. Do contrário, já tem acontecido precisar tomar duas ou três doses quem se comporta desse jeito.
É Sócrates: Manda-o passear! disse. E que prepare dose dupla, e até tripla, se for preciso.
Eu já sabia mais ou menos o que irias responder, observou Critão; mas o homem não me dava sossego.
Deixa-o, disse.