Ficino (Teologia Platônica:XVIII.2) – Anjos e almas nem sempre existiram

Estabelecemos uma hierarquia entre os corpos; estabeleçamos uma hierarquia entre os Espíritos. Há o Espírito superior, que sempre existiu e sempre existirá: é Deus. Há os Espíritos inferiores dos animais, que nem sempre existiram e nem sempre existirão. É necessário que entre esses extremos tão diferentes haja duas espécies de Espíritos intermediários, que participem tanto desse Espírito superior quanto desses Espíritos inferiores. Como conceberemos esses Espíritos intermediários? Diremos que sempre existiram, mas que um dia deixarão de existir? Absolutamente não, pois o que sempre existiu, existiu infinitamente, graças a um poder infinito. E o poder infinito nunca se esgota. Portanto, se sempre existiram, sempre existirão e, por conseguinte, serão espíritos iguais a Deus em duração, e não espíritos intermediários. Portanto, para que permaneçam intermediários na duração, é preciso que tenham começado e nunca acabem, e mesmo que tenham sido criados do nada, não devem voltar ao nada. De fato, o que chamamos o nada na criação desses Espíritos não é nem a matéria de que são feitos, nem a sua causa, mas o termo de que são feitos. De fato, nem sequer é um termo, mas aquilo a que lhe chamamos. Esses Espíritos não são, portanto, constrangidos pela natureza desse nada, natureza essa que os faria voltar ao nada e que eles rejeitaram logo que passaram a existir. Além disso, conservam a natureza da sua causa, da qual receberam a sua essência, de modo que são conservados no seu ser, mesmo longe do nada, graças ao mesmo poder infinito que os tirou do nada para a existência, sem a intervenção do nada.

Não é absurdo pensar que aquilo que é criado diretamente pelo princípio infinito e pelo fim infinito, isto é, por Deus, não terá fim, pois mesmo muitas coisas que procedem de um princípio finito e de um fim finito são justamente consideradas como devendo viver sem fim. É assim que pensamos, se não houver nada em contrário, que o número procede infinitamente da unidade, como a linha do ponto matemático e o futuro do momento presente. Não só a religião, mas também Avicena e Algazel, como filósofos, admitem que uma criatura pode existir para sempre, especialmente a alma. Por conseguinte, os anjos constituem um intermediário entre Deus e os animais.

O outro intermediário, imediatamente a seguir aos anjos, é constituído pelas almas dos homens, que se assemelham aos anjos pelo fato de serem sempre, mas diferem deles pelo fato de não terem existido sempre, como os anjos que, nascidos na origem do mundo, segundo a ordem natural, antes mesmo da revolução do céu, inseparável do tempo, existiram desde sempre, embora não tenham existido desde toda a eternidade. As nossas almas, nascidas depois do início dos tempos, são inferiores aos anjos e, no entanto, não são temporais, porque foi no ponto exato da sua eternidade, que é sempre a mesma e que ultrapassa e abrange todo o espaço de tempo em que criou os anjos, que Deus criou também as almas dos homens. As almas dos homens existem, portanto, acima das vicissitudes do tempo, embora tenham sido criadas depois do início dos tempos. As almas dos animais, pelo contrário, são geradas depois do início dos tempos e estão sujeitas às vicissitudes do tempo, porque não são criadas diretamente por Deus a partir da eternidade de Deus, mas a partir das revoluções de ambos e das potências das almas, razão pela qual nem sempre vivem. Geradas no tempo pelo movimento do céu, essas almas também estão sujeitas à variabilidade do tempo. E se elas têm um carácter brilhante, tudo isso deriva continuamente da própria fonte da terceira essência, da qual elas não são fluxos, mas sombras. É por isso que os platonistas pensam que são de alguma forma “ídolos” da alma do mundo ou da alma da esfera que habitam, e os colocam entre a terceira essência e as qualidades dos corpos, enquanto os trazem de volta a essa essência como sombras. É isso que leva Plotino a dizer: “Assim como através de um grande número de espelhos são projetadas muitas imagens de um mesmo rosto, assim também a partir da alma da esfera muitas imagens de uma única alma são espalhadas por muitos corpos de animais”. Corpos de animais, digo eu, nos quais não há almas humanas, porque onde elas estão, a potência irracional segue, como uma sombra, a potência racional da nossa alma.