Filebo 16b-20a — A Dialética

Protarco – Qual é? Basta que o menciones.

Sócrates – Indicá-lo é fácil; difícil acima de tudo é percorrê-lo. Foi graças a esse método que se descobriu tudo o que se diz a respeito às artes. Considera o seguinte.

Protarco – Podes falar.

Sócrates – Até onde o compreendo, trata-se de um dádiva dos deuses para os homens, jogada aqui para baixo por intermediário de algum Prometeu, juntamente com um fogo de muito brilho. Os antigos, que eram melhores do que nós e viviam mais perto dos deuses, nos conservaram essa tradição: que tudo o que se diz existir provém do uno e do múltiplo e traz consigo, por natureza, o finito e o infinito. Uma vez que tudo está coordenado dessa maneira, precisamos procurar em todas coisas sua idéia peculiar, pois sem dúvida nenhuma a encontraremos. Depois dessa primeira idéia, teremos de procurar mais duas, se houver duas, ou mais três, ou qualquer outro número, procedendo assim com todas, até chegarmos a saber não apenas que a unidade primitiva é una e múltipla e infinita, como também quantas espécies ela contém. Não devemos aplicar a pluralidade a idéia do infinito sem primeiro precisar quantos números ela abrange, desde o infinito até à unidade; só então soltaremos a unidade de cada coisa, para que se perca livremente no infinito. Conforme disse, foram os deuses que nos mimosearam com essa arte de investigar e aprender e de nos instruirmos uns com os outros. Mas os sábios de nosso tempo assentam ao acaso o uno e o múltiplo com mais pressa ou lentidão do que fora necessário, saltando indevidamente da unidade para o infinito, com o que lhes escapam os números intermediários. Esse, o caráter fundamental que permite distinguir se em nossas discussões procedemos como verdadeiros dialéticos ou como simples disputadores.

VII – Protarco – Parte do que disseste, Sócrates, me parece inteligível; mas acerca de alguns pontos ainda necessito de esclarecimentos.

Sócrates – O que eu digo, Protarco, ficará bastante claro se o aplicares às letras do alfabeto, conforme as aprendeste quando menino.

Protarco – Como assim?

Sócrates – Una é a voz que nos sai da boca e, ao mesmo tempo, de infinita multiplicidade para cada um de nós – Sem dúvida.

Protarco – Certíssimo.

Sócrates – A mesma coisa faz o músico.

Protarco – Como assim?

Sócrates – Em relação com a arte da música, a voz é una em si mesma.

Protarco – Exato.

Sócrates – Reconheçamos, então, que há dois sons: o grave e o agudo, e mais o terceiro: o médio.

Protarco – Isso mesmo.

Sócrates – Porém não conhecerás música, se souberes apenas isso; como será o mesmo que nada, por assim dizer, o que souberes desse domínio se o ignorares.

Protarco – Sem dúvida.

Sócrates – Mas, meu caro amigo, quando estudares os intervalos dos sons, o número e a natureza dos agudos e dos graves, os limites dos intervalos e todas as combinações possíveis, descobertas por nossos pais, que no-las transmitiram, como a seus descendentes, sob a denominação de harmonias, bem como as operações congêneres que vamos encontrar nos movimentos dos corpos e que, interpretadas pelos números, como diziam, receberam o nome de ritmo e medida, e considerares que o mesmo princípio terá de ser aplicado a tudo que é uno e múltiplo: quando houveres aprendido tudo isso, então, e só então, chegarás a ser sábio, e quando examinares às luzes desse mesmo princípio seja a unidade que for, tornar-te-ás sábio com relação a ela. Mas a infinitude dos indivíduos e a multidão que se encontra em cada um dificultam sobremodo sua compreensão e te impedem de ser considerado como entendido na matéria, por nunca te deteres no número de nenhuma coisa.

VIII – Protarco – Parece-me, Filebo, muito claro o que Sócrates acabou de expor.

Filebo – É também o que eu penso. Mas, por que nos fez toda essa exposição e aonde ele quer chegar?

Sócrates – Filebo tem razão, Protarco, de fazer-nos essa pergunta.

Protarco – Sem dúvida, dá-lhe, então, a resposta adequada.

Sócrates – É o que farei; mas, só depois de apresentar uma pequena observação. O que eu digo é que quando tomamos qualquer unidade, não devemos olhar de imediato para a natureza do infinito, mas para algum número; e o contrário disso; sempre que formos obrigado a começar pelo infinito, nunca saltemos imediatamente para a unidade; esforcemo-nos, isso sim, para alcançar um número que em cada caso represente certa pluralidade, para chegar à unidade depois de passar pelo todo. Retomemos o exemplo anterior, das letras.

Protarco – De que jeito?

Sócrates – Observando que a voz humana era infinita, certa divindade, porventura, ou fosse algum homem divino, conforme dizem no Egito com relação a um certo Teute, separou, de início, dessa infinitude uma tantas vogais, não uma, simplesmente, muitas, e depois outras letras que, serem vogais, participam de algum som, e também em número apreciável. Por fim, distinguiu uma terceira variedade de letras a que hoje damos o nome de mudas. De seguida, apartou as letras que não tem som nem voz, até individualizar uma por uma, procedendo da mesma forma com as outras duas classes, das vogais e das semivogais, e assim, depois de dominá-las em sua totalidade, deu a cada uma e a todas em conjunto o nome de elementos. E como houvesse percebido que nenhum de nós consegue aprender uma letra sem aprender todas, considerou como unidade esse elo de ligação, a que deu o nome de gramática, como arte perfeitamente individualizada.