Sócrates – Então, afirmaremos, como há pouco, que há três estados, ou diremos que só há dois: a dor, que constitui um mal para os homens; e a ausência de dor, que em si mesma é um bem, a que damos o nome de prazer?
XVII – Protarco – Sócrates, a propósito de quê formulamos a nós mesmos essas perguntas? Não atino com a razão de assim procedermos.
Sócrates – È que nunca ouviste falar em certos inimigos de nosso Filebo.
Protarco – A quem te referes?
Sócrates – Gente muito entendida nos problemas da natureza, e que negam em absoluto a existência do prazer.
Protarco – Como assim?
Sócrates – O que eles dizem, é que tudo o que Filebo e seus adeptos denominam prazer consiste apenas em escapar das dores.
Protarco – E que nos aconselhas, Sócrates: acompanhá-los? Ou como te parece?
Sócrates – Em absoluto; mas valermo-nos deles como de profetas que não vaticinam com a ajuda da arte porém de certa rabugem incômoda, não inteiramente destituída de nobreza, e que odeiam o poder do prazer, por nada de são reconhecerem nele, considerando feitiço, não prazer, sua influência sedutora. É com esse espírito que precisas utilizá-los, depois de sopesar devidamente outras manifestações de seu azedume. De seguida, ficarás sabendo o que na minha opinião constitui o verdadeiro prazer; e só depois de estudar sob esses dois aspectos é que emitiríamos parecer definitivo.
Protarco – Falaste com muito acerto.
Sócrates – Como aliados, então, sigamos no rastro do humor rabugento desses tais. Penso que eles começariam de longe e nos diriam mais ou menos o seguinte: Se quiséssemos conhecer a natureza de alguma espécie, por exemplo, a da dureza, não aprenderíamos melhor se olhássemos para os objetos mais duros, em vez de considerar os que o são em grau algum tanto reduzido? Agora, Protarco, assim como respondes a minhas perguntas, terás de fazer com a dessa gente mal-humorada.
Protarco – Perfeitamente, e lhes direi que devemos estudar primeiro os objetos grandes.
Sócrates – Sendo assim, se quisermos considerar o gênero do prazer e rastrear sua natureza, não devemos lançar a vista para os que são tidos na conta de mais frequentes, mas para os chamados profundos e veementes.
Protarco – Não há quem não concorde contigo neste particular.
Sócrates – Ora, os prazeres mais acessíveis e que sempre passaram por nos proporcionar maior gozo, não nos são dados por intermédio do corpo?
Protarco – Como não?
Sócrates – E serão ou ficarão maiores nas pessoas doentes ou nos são? É preciso cuidado para não nos apressarmos em responder e tropeçar; talvez fosse mais fácil dizer: nos indivíduos sãos.
Protarco – É provável.
Sócrates – E então? Os maiores prazeres não são os que decorrem dos mais violentos desejos?
Protarco – Isso também é verdade.
Sócrates – Mas os doentes de febre ou de incômodos semelhantes não sentem com mais intensidade a sede e o frio e tudo o que os atinge por intermédio do corpo, passando maiores necessidades e, consequentemente, experimentando maior prazer quando conseguem satisfazê-las? Ou diremos que isso não seja verdade?
Protarco – Depois de tua exposição, é mais do que evidente.
Sócrates – E agora: não será certo dizer-se que se alguém quiser conhecer os prazeres mais intensos não deverá lançar as vistas para a saúde, mas para a doença? Aliás, não irás imaginar que com semelhante pergunta eu defenda a tese de que os doentes graves sentem mais prazer do que as pessoas sãs. O que precisarás entender é que minha pesquisa diz respeito à intensidade do prazer e à sede em que se manifesta em cada um de nós. Importa-nos conhecer sua natureza e decidir o que querem significar os que negam a existência do prazer.
Protarco – Acompanho muito bem tua exposição.
Sócrates – É o que irás demonstrar, Protarco, agora mesmo. Responde ao seguinte: acaso percebes maiores prazeres – não me refiro ao seu número, mas à vivacidade e à intensidade – no desregramento do que na temperança? Reflete antes de responder.
Protarco – Percebo aonde queres chegar e noto que há grande diferença. Os indivíduos moderados a todo instante são contidos pelo aforismo Nada em excesso, a que obedecem integralmente, enquanto os insensatos e os arrogantes se entregam aos prazeres até à loucura e a mais abjeta desmoralização.
Sócrates – Ótimo. Mas, se for assim, é mais do que claro que é num certo estado de depravação da alma e do corpo, não na virtude, que vamos encontrar os maiores prazeres e as maiores dores.
Protarco – Perfeitamente.
Sócrates – Dentre esses, então, precisaremos escolher alguns e descobrira razão de os termos considerado como maiores.
Protarco – Sem dúvida.
Sócrates – Então, examina os prazeres de certos estados mórbidos e dize como se comportam.
Protarco – Quais são?
Sócrates – Os das doenças repugnantes, tão odiadas daqueles tipos de humor azedo a que nos referimos há pouco.
Protarco – Quais são?
Sócrates – Seria o caso da cura da sarna e de outros estados parecidos, por meio da fricção, sem o recurso de medicamentos. Pelos deuses! Que nome daremos à sensação que experimentamos em tais ocasiões? Dor ou prazer?
Protarco – Um mal de natureza mista, Sócrates, é o que eu diria.
Sócrates – Não foi como vistas a Filebo que eu apresentei esse argumento,; mas sem o estudo, Protarco, de tais prazeres, e dos outros que se lhes relacionam dificilmente chegaremos a resolver a questão apresentada.