Filebo 48a-50e — Tragédia e Comédia

Sócrates – E das representações trágicas, em que os espectadores choram no maior deleite, não te recordas?

Protarco – Como não?

Sócrates – E nosso estado de alma nas comédias? Não sabes que também aí ocorre um misto de prazeres e de dores?

Protarco – Não apanho muito bem esse aspecto da questão.

Sócrates – Em verdade, Protarco, não é muito fácil explicar o que se passa conosco em tais ocasiões.

Protarco – Pelo menos, é assim que eu penso.

Sócrates – Então, examinemos esse caso, por isso mesmo que é o mais obscuro, para apanharmos facilmente nos outros essa mistura de prazer e de dor.

Protarco – Podes falar.

Sócrates – Há pouco referimo-nos à inveja. Admites que se trata duma dor da alma, ou como te parece?

Protarco – Isso mesmo.

Sócrates – Mas a verdade é que o invejoso se nos revela contente com a desgraça do próximo.

Protarco – Muito!

Sócrates – Como também é mal a ignorância e o que denominamos estupidez.

Protarco – Sem dúvida.

Sócrates – Depois desses preliminares, procura conhecer a natureza do ridículo.

Protarco – Podes falar.

Sócrates – Em resumo, é uma espécie de vício que tira o nome de uma hábito particular, a parte do vício em geral que se opõe radicalmente àquilo da inscrição de Delfos.

Protarco – Referes-te, Sócrates, ao preceito Conhece-te a ti mesmo?

Sócrates – Exato. Como, ao pé da letra, o contrário disso viria a ser não conhecer-se em absoluto.

Protarco – Como não?

Sócrates – E agora, Protarco, experimenta dividir isso em três.

Protarco – De que jeito? Não me sinto à altura de semelhante tarefa.

Sócrates – Insinuas que é a mim é que compete resolver a questão?

Protarco – Não insinuo, apenas; peço instantemente que te incumbas dessa parte.

Sócrates – Quem não se conhece não fica sujeito a três modalidades de ignorância?

Protarco – Como assim?

Sócrates – Em primeiro lugar, quanto à riqueza, por imaginar-se mais rico do que é.

Protarco – Com muita gente acontece isso mesmo.

Sócrates – Como há também os que se julgam maiores e mais belos do que são, e em tudo o que se refere ao corpo vão sempre muito além da realidade.

Protarco – Exato.

Sócrates – Porém em muito maior número quero crer, são os que se iludem com respeito à terceira modalidade de ignorância, referente aos bens da alma, por acharem que se distinguem mais do que os outros pela virtude, quando, em verdade, tal não acontece.

Protarco – É muito certo.

Sócrates – E dentre as virtudes, não é a respeito da sabedoria que o vulgo se considera mais entendido, enchendo-se, com isso, de querelas e da fantastiquice de falsos conhecimentos?

Protarco – Nem pode ser de outra maneira.

Sócrates – Quem disser que é um mal semelhante estado d’alma, tê-lo-á definido com acerto.

Protarco – Sem dúvida.

Sócrates – E agora, Protarco, precisamos dividir isso em dois, se quisermos ver a inveja pueril e essa estranha mistura de dor e prazer. E como dividir? Talvez perguntes. Todas as pessoas que concebem totalmente essa opinião falsa a seu próprio respeito, devem ser necessariamente dotadas, como o resto dos homens, ou de força ou de poderio ou, conforme penso, de seus contrários;

Protarco – Nem pode ser de outra maneira.

Sócrates – Divide, então, de acordo com esse critério; e esses tais, os naturalmente fracos e incapazes de defender-se quando se tornam objeto de mofa, se os qualificares de ridículos, só terás falado a verdade. Os capazes de vingar-se, se os chamares de fortes e temíveis como inimigos, terás dado a todos eles a designação apropriada, porque a ignorância nos poderosos é hostil e torpe, por ser nociva ao próximo, ou por si mesma ou por suas imitações, mas nas pessoas fracas ela se inclui naturalmente na classe das coisas ridículas.

Protarco – Tudo isso está certo: mas o que eu penso ainda não distingo muito bem é a tal mistura de prazeres e de dores.

Sócrates – Examina em primeiro lugar a natureza da inveja.

Protarco – Basta que ma expliques.

Sócrates – Não há dores e prazeres injustos?

Protarco – De toda necessidade.

Sócrates – Como não será manifestação de inveja nem de injustiça alegrar-se um com as desgraças do inimigo.

Protarco – Como o poderia?

Sócrates – E na presença de algum infortúnio de pessoa amiga, não é sumamente injusto alegrar-se, em vez de entristecer-se?

Protarco – Como não?

Sócrates – E quanto à falsa opinião de nossos amigos a respeito de sal sabedoria ou da beleza e de tudo o mais que enumeramos há pouco e distribuímos em três classes, não declaramos serem sempre ridículas quando são fracas, ou odiosas quando associadas à força? Ou já não sustentaremos o que eu disse há pouco, que esse estado de espírito de nossos amigos, quando não chega a prejudicar o próximo é simplesmente irrisório?

Protarco – Irrisório, sem dúvida.

Sócrates – E não diremos que é um mal, por isso mesmo que não passa de ignorância?

Protarco – Certo.

Sócrates – E quando rimos, alegramo-nos ou sofremos?

Protarco – É evidente que nos alegramos.

Sócrates – É alegrar-se com a desgraça do amigo, já não concluímos que é produto da inveja?

Protarco – Forçosamente.

Sócrates – Logo, sempre que rimos do ridículo dos amigos, diz nosso argumento que ao misturarmos o prazer com a inveja, misturamos prazer com dor, pois há muito já admitimos que a inveja é dor da alma, e o riso, prazer, vindo ambos a reunir-se na presente conjuntura.

Protarco – É muito certo.

Sócrates – Mostra-nos, ainda, o argumento, que nas lamentações, nas tragédias e nas comédias, e não apenas no teatro como também na comédia e na tragédia da vida humana e em mil coisas mais, os prazeres e as dores andam sempre associados.

Protarco- Não vejo, Sócrates, como se possa dissentir de tudo o que afirmaste, ainda que se fizesse muito empenho em defender opinião contrária.

XXX – Sócrates – A cólera, o desejo, as lamentações, o medo, o amor, o ciúme, a inveja e mil outra emoções semelhantes foi o que nos propusemos estudar, com a intenção de pesquisar nelas a mistura dos dois elementos tantas vezes mencionadas, não é isso mesmo?

Protarco – Exato.

Sócrates – Como verificamos que as lamentações, a inveja e a cólera constituíram o objetivo exclusivo destas considerações.

Protarco – Como não verificar?

Sócrates – Sendo assim, ainda nos falta estudar muitas outras paixões.

Protarco – Sem dúvida.

Sócrates – Na tua opinião, qual foi o principal motivo que me levou a mostrar-te essa mistura na comédia? Não terá sido para convencer-te de que é fácil apontar igual mistura no medo, no amor, e em tudo o mais? Uma vez que me aceitasses esse ponto, dispensar-me-ias de alongar minha exposição com o estudo das outras paixões, e passarias a admitir, sem mais rodeios, isto mesmo, a saber, que o corpo sem a alma e a alma sem o corpo, e os dois associados, são passíveis das mais variadas misturas de prazeres e de penas. Declara agora se me desobrigas dessa explicação, ou se estás disposto a aguardar aqui a meia-noite? Contudo, espero que com mais algumas palavrinhas alcance de tua parte licença par retirar-me. Prometo apresentar-te amanhã uma relação completa de todos esses casos. Agora, só desejo velejar em linha reta para o que ainda falta estudar, até poder formular o juízo que Filebo espera de mim.

Protarco – Falaste muito bem, Sócrates; arremata o que falta como bem te parecer.