Filosofia e Ser

Deveremos, em última análise, dizer que a filosofia aplica à noção de Ser imperecível e invisível, herdada da religião uma forma de reflexão racional e positiva, adquirida na prática da moeda? Seria ainda demasiado simples. O Ser de Parmênides não é o reflexo, no pensamento do filósofo, do valor mercantil, não transpõe, pura e simplesmente, no domínio do real, a abstração do signo monetário. O Ser de Parmênides é Uno; e esta unicidade que constitui um dos seus traços essenciais, opõe-no tanto à moeda como à realidade sensível.

Na linguagem dos jônios, o real exprime-se ainda por um plural, ta onta, as coisas que existem, tais como elas nos são dadas na sua multiplicidade concreta. Como observa Werner Jaeger, o que interessa aos físicos, e aquilo de que eles buscam o fundamento, são as realidades naturais, atualmente presentes1. O Ser reveste-se para eles, quaisquer que sejam a sua origem e o seu princípio, da forma visível de uma pluralidade de coisas. Em Parmênides, pelo contrário, o Ser exprime-se, pela primeira vez, por um singular, to on: não se trata mais de determinados seres, mas do Ser em geral, total e único. Esta mudança de vocabulário traduz o aparecimento de uma nova noção do Ser: não designa mais as coisas diversas que a experiência humana apreende, mas o objeto inteligível do logos, quer dizer, da razão, exprimindo-se através da linguagem, conforme às suas exigências próprias de não-contradição. Esta abstração de um Ser puramente inteligível, excluindo a pluralidade, a divisão, a mudança, constitui-se em oposição do real sensível e ao seu perpétuo devir; mas não contrasta menos com uma realidade do tipo da moeda, que não só comporta a multiplicidade, do mesmo modo que as coisas da natureza, mas que implica mesmo, em princípio, uma possibilidade indefinida de multiplicação. O Ser de Parmênides não pode mais “monetizar-se” nem tampouco é suscetível de devir.

O mesmo é dizer que o conceito filosófico de Ser não foi forjado através da prática monetária ou da atividade mercantil. Traduz esta mesma aspiração para a unidade, esta mesma procura de um princípio de estabilidade e de permanência de que vimos o testemunho, nos alvores da Cidade, no pensamento social e político, e que também se encontra em certas correntes do pensamento religioso, como por exemplo o orfismo. Mas esta aspiração ao Uno e ao Idêntico exprime-se no quadro de problemas novos, propriamente filosóficos, que surgem quando a antiga pergunta: “Como emerge a ordem do caos?” se transformou em um tipo diferente de aporias: “Que existe de imutável na natureza? Qual é o princípio, arche da realidade? Como podemos nós atingi-lo e exprimi-lo?” Ora, o aparelho das noções míticas que os físicos da Jônia tinham herdado da religião: a gênese, o amor, o ódio, a união e a luta dos opostos, não correspondiam mais às necessidades de uma indagação que visava definir, em uma linguagem puramente profana, o que constitui o fundo permanente do Ser. A doutrina de Parmênides marca o momento em que é afirmada a contradição entre o devir do mundo sensível — este mundo jônio da physis e da genesis — e as exigências lógicas do pensamento. A reflexão matemática desempenhou, sob este aspecto, um papel decisivo. Pelo seu método de demonstração, e pelo caráter ideal dos seus objetos, tomou o valor de modelo. Esforçando-se por aplicar o número à extensão, encontrou, no seu domínio, o problema das relações do uno e do múltiplo, do idêntico e do diverso; ela o colocou com rigor em termos lógicos. Levou a denunciar a irracionalidade do movimento e da pluralidade, e a formular claramente as dificuldades teóricas do juízo e da atribuição. O pensamento filosófico pôde assim desprender-se das formas espontâneas da linguagem em que se exprimia, submetê-las a uma primeira análise crítica: para além das palavras, epea, tais como o vulgo as emprega, há, segundo Parmênides, uma razão imanente ao discurso, um logos, que consiste em uma exigência absoluta de não-contradição: o ser é, o não-ser não é2. Sob esta forma categórica, o novo princípio, que preside ao pensamento racional, consagra a ruptura com a antiga lógica do mito. Mas, ao mesmo tempo, o pensamento acha-se separado, como por um golpe de machado, da realidade física: a Razão não pode ter outro objeto que não seja o Ser, imutável e idêntico. Depois de Parmênides, a tarefa da filosofia grega consistirá em restabelecer, por uma definição mais rigorosa e mais sutil do princípio de contradição, o elo entre o universo racional do discurso e o mundo sensível da natureza3.

Indicamos já os dois traços que, no domínio da filosofia, caracterizam o novo pensamento grego. São, por um lado, a rejeição, na explicação dos fenômenos, do sobrenatural e do maravilhoso; por outro, a ruptura com a lógica da ambivalência, a procura, no discurso, de uma coerência interna, por uma definição rigorosa dos conceitos, uma nítida delimitação dos planos do real, uma estrita observância do princípio de identidade. Estas inovações, que introduzem uma primeira forma de racionalidade, não constituem de qualquer modo um milagre. Não existe uma imaculada concepção da Razão. Como Cornford mostrou, o advento da filosofia é um fato de história, enraizado no passado, formando-se tanto a partir dele como contra ele. Esta mutação mental aparece solidária das transformações que se produzem, entre os séculos VII e VI, em todos os níveis das sociedades gregas: nas instituições políticas da Cidade, no direito, na vida econômica, na moeda. Mas solidariedade não significa simples reflexo. A filosofia, se ela traduz aspirações gerais, coloca problemas que só a ela pertencem: natureza do Ser, relações do Ser e do pensamento. Para os resolver, é preciso que ela mesma elabore os seus conceitos, construa a sua própria racionalidade. Nesta tarefa, ela pouco se apoiou no real sensível; não recolheu grande coisa da observação dos fenômenos naturais; não fez experiências. A própria noção de experimentação lhe permaneceu estranha. A sua razão não é ainda a nossa razão, esta razão experimental de ciência contemporânea, orientada para os fatos e para a sua sistematização teórica. Elaborou, é certo, uma matemática, primeira formalização da experiência sensível, mas, precisamente, não procurou utilizá-la na exploração do real físico. Entre a matemática e a física, o cálculo e a experiência, faltou a conexão; a matemática ficou solidária da lógica4. Para o pensamento grego, a natureza representa o domínio do pouco mais ou menos, ao qual não se aplicam nem medida exata nem raciocínio rigoroso5. Não se descobre a razão na natureza: ela está imanente na linguagem. Não se forma através das técnicas que operam sobre as coisas; constitui-se pela elaboração e pela análise dos diversos modos de ação sobre os homens, de todas estas técnicas que têm a linguagem por instrumento comum: a arte do advogado, do professor, do orador, do político6. A razão grega é a razão que permite agir de modo positivo, refletido, metódico, sobre os homens, mas não transformar a natureza. Nestes limites, como nas suas inovações, ela é bem filha da Cidade.


  1. W. Jaeger, op. cit., cap. II, p. 197, n. 2. 

  2. Cf. Parmênides, apud Diels, F.S.V.7, I, p. 238, 7 sq. e p. 239, 6 sq.; sobre as relações das palavras e do logos, em Parmênides, cf. P.-M. Schuhl, op. cit., pp. 283 e 290, e a nota 3 da p. 290. 

  3. Ibid., pp. 293 sq. 

  4. Cf. o prefácio de Léon Brunschvicg à obra de Arnold Reymond, Histoire des sciences exactes et naturelles dans l’Antiquité gréco-romaine, Paris, 1955, pp. VI e VII. A teoria das Ideias-Números, em Platão, ilustra esta integração do matemático no lógico. Retomando uma expressão de Julius Stenzel, A. Lautman observa que as Ideias-Números constituem os princípios que ao mesmo tempo ordenam as unidades aritméticas em seu lugar no sistema e explicitam os diferentes graus da divisão progressiva das Ideias: “Os esquemas de divisão das Ideias no Sofista, escreve, organizam-se assim segundo os mesmos planos que os esquemas de geração dos números” (Essai sur les notions de structure et d’existence en mathématiques, Paris, 1937, p. 152). 

  5. Cf. Alexandre Koyré, “Du monde de l’ “à-peu-près” à l’univers de la précision”, Critique, 1948, pp. 806-883. 

  6. Sobre a passagem da retórica e da sofística à lógica, cf. Jacqueline de Romilly, Histoire et raison chez Thucydide, Paris, 1956, pp. 181-239. A prática dos discursos antitéticos, das antilogias, conduzirá, pelo estabelecimento dos “lugares comuns” do discurso, pela análise das estrutura da demonstração, pela medida e aritmética dos argumentos opostos, a uma ciência do raciocínio puro. 

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