Que a filosofia grega nos pode aparecer como forma sui generis da consciência religiosa, inclusive, como pretendendo substituí-la, é o que se nos mostra em vários momentos da sua história, em especial, no princípio e no fim, se é que, a propósito de «filosofia grega», ainda se pode falar de um fim ou de um término. Mas a lição mais instrutiva que desse fenômeno nos é dado extrair, é que houve outrora uma religião, i. é, certa consciência da presença dos deuses no mundo, ou além dele, que nasceu fatalmente destinada a vir a ser aquilo que nós denominamos «filosofia». Nada mais natural do que suspeitar que a mitologia também estava comprometida nesse destino. Não sendo, ela mesma, uma filosofia (porque se o fosse, jamais teria nascido a filosofia que se nos tornou familiar), já trazia em si, desde as origens, uma característica que a distingue de todas as demais, designadamente, das mitologias dos povos que nunca filosofaram (à maneira tradicional, entenda-se!). Com efeito, traço notabilíssimo da mitologia dos Gregos é a possibilidade manifesta e profusamente manifestada pela história da sua cultura, de transmutar-se, toda ela, em poesia e história profanas, e isto, desde épocas muito remotas. Noutros termos: característica da mitologia grega, traço que a distingue de todas as outras e, em especial, das mitologias de todos os povos chamados «primitivos» ou «atrasados» e, em parte, das grandes civilizações próximo-orientais, é o gradativo ou brusco processo de separação da imagem mítica e do acto ritual. É um processo diabólico, no étimo sentido da palavra, mediante o qual nasce uma literatura que, em todos os gêneros, por muito tempo ainda será «mitográfica» ou «mitológica», e uma parte da religião, que vai morrendo a golpes de rotina. Por isso, subsiste inteira a veracidade de Schelling, quando assevera que a poesia grega nasceu com a mitologia, dando, assim a mais funda razão a Heródoto, o qual afirmara que Homero e Hesíodo outorgaram a «teogonia» aos Helenos, i. é, a história (poética) dos deuses, ou, numa palavra, a mitologia. Mas note-se bem: isto só o podemos asseverar dos Gregos; só da mitologia grega é que está certo o afirmar-se certa co-naturalidade ou co-essencialidade entre mito e poesia, já que a maioria dos poetas gregos nunca cessaram de cantar os seus deuses. Aliás, se assim não fosse, que seria da poesia grega? (Eudoro de Sousa, “Sempre o Mesmo acerca do Mesmo”)