Justo e Justiça (Gerson)

Excerto de GERSON, Lloyd P.. “Self-Knowledge and the Good”, in AMBURY, James & GERMAN, Andy, KNOWLEDGE AND
IGNORANCE OF SELF IN PLATONIC PHILOSOPHY. Cambridge: Cambridge University Press, 2019, p. 20-23.

O processo de identificação da natureza filosoficamente disposta começa a ser sugerido no livro VI (República). Sócrates descreve a natureza dessas pessoas desta maneira:

Pois certamente, Adeimantus, alguém que realmente direcionou seu pensamento para as coisas que realmente são, não tem tempo de atentar para os assuntos humanos e ficar cheio de rancor e ódio como resultado de entrar em suas disputas. Em vez disto, olhando para as coisas que são ordenadas e eternamente idênticas, coisas que não fazem injustiça nem sofrem injustiça umas das outras, estando eternamente em ordem e existindo de acordo com a razão, ele as imita e tenta se assimilar a elas tanto como é possível. Ou você acha que há algum dispositivo pelo qual alguém que deseja se associar a estes não os imita? (Reeve trad. ligeiramente modificada)

Esta passagem faz uma afirmação extraordinária quando tomada literalmente. O filósofo deseja assimilar-se às Formas. Essa assimilação consiste em, ou pelo menos envolve, imitação de Formas. Talvez a maneira mais comum de interpretar essa passagem seja interpretá-la como significando que o filósofo se assimila às Formas instanciando-as. Assim, ele se assimila à Forma de Justiça, tornando-se justo. E, de fato, pode-se considerar a famosa passagem em Teeteto dessa maneira. Mas mesmo que a prática das virtudes ajude a pessoa na assimilação às Formas, não pode ser o que consiste na assimilação aqui. Pois já foi estabelecido no livro IV, uma pessoa justa é aquela em quem a razão governa com vistas a toda a alma, e não há nada nessa pessoa que indique que ela tem algum interesse em filosofia ou em contemplação. Segundo, estar apenas na alma de alguém pode muito bem ser uma imitação da Forma de Justiça, mas não pode ser o que está sendo assimilado (ou “sendo feito do mesmo jeito que”) esta Forma é. Pois, embora uma instância é o mesmo que Justiça, na medida em que não admite seu oposto, o portador dessa instância não é, assim, feito o mesmo que a Forma. Em nenhum sentido o ser humano é feito o mesmo que a Forma eterna de Justiça por ser justo. Mesmo as palavras qualificativas “tanto quanto possível” não sugerem isto. Pois a prática da justiça neste mundo não tem implicações para a longevidade, muito menos para a eternidade. De fato, a assimilação ao divino pela prática da justiça é problemática, uma vez que o divino não é/está onde a prática das virtudes é para ser encontrada. Os deuses imortais, por exemplo, não precisam de coragem. No entanto, esse fato não exige que rejeitemos a ideia de que a prática das virtudes contribui para a assimilação desejada. Eles são, na melhor das hipóteses, instrumentais, porém não constitutivos.

A interpretação correta desta passagem, acredito, é essa. Ao conhecer a Forma de Justiça ou qualquer outra Forma, a pessoa se “informa” com o objeto de conhecimento. Se recordarmos o Fédon, é mostrado no chamado Argumento de Afinidade que, dado que temos conhecimento de Formas, não poderíamos ter esse conhecimento a menos que fôssemos, como Formas, entidades imateriais. A entidade imaterial, é claro, não é o ser humano, mas a alma e, em particular, a “parte imortal” da alma. A assimilação à Forma é um fazer literal de algo para ser o mesmo que algo outro, porque o intelecto ou a parte racional da alma já é feito da mesma “substância” que as Formas, mas, em as conhecendo é feito para ser idêntico ao elas, isto é, cognitivamente idênticos. O conceito de identidade cognitiva tem três componentes: (1) identidade com a natureza ou essência conhecida, (2) consciência dessa identidade e (3) identificação do sujeito de (1) com o sujeito de (2). O filósofo descobre sua verdadeira identidade quando descobre que é o sujeito envolvido na contemplação. O “conteúdo” dessa identidade é apenas o conjunto de entidades inteligíveis que ele conhece. Diante do exposto, estamos agora em uma posição melhor para apreciar a virada decisiva no argumento do Livro VI (República), que consiste no “caminho mais longo” da exposição metafísica. Sócrates diz:

Você já ouviu muitas vezes dizer que a Ideia de Bem é o estudo mais importante e que é por sua relação com ela que justas coisas e o resto se tornam úteis ou benéficas. E agora você deve estar bastante certo de que é isso que vou dizer e, além disso, que não temos conhecimento adequado disto. E se não o conhecemos, você sabe que mesmo o conhecimento mais amplo possível de outras coisas não é benéfico para nós, mais do que se adquirirmos alguma posse sem o Bem. Ou você acha que existe algum benefício em possuir tudo, menos o Bem? Ou conhecer tudo sem conhecer o Bem, sem conhecer nada belo ou bom? (Reeve trad. ligeiramente modificado)

Há dois pontos nesta passagem em particular, nos quais precisamos nos concentrar. Primeiro, é pela relação à Ideia de Bem que coisas justas são úteis ou benéficas. Aqui está uma conexão explícita entre o princípio central da metafísica de Platão e a solução para o problema de como pode ser demonstrado que ser justo tem efeitos benéficos. Segundo, sem conhecer essa ideia, o conhecimento de outras coisas não é de nenhum benefício. Lembramos que no Livro IV (República), justiça é definida como cada parte da alma executando seu próprio trabalho e sabedoria como a faculdade racional da alma que sabe o que é bom para toda a alma. Então, acontece que saber o que é bom para toda a alma não é uma questão de conhecimento prático, mas de conhecimento teórico da Ideia do Bem. Sócrates pretende insistir que, a menos que você saiba que “justiça é bem”, não há benefício em possuir justiça? Diante disso, isso parece absurdo, uma vez que já foi demonstrado no livro IV que a justiça é um bem psíquico análogo ao bem que é a saúde física. O que mais do que você precisa saber? Aparentemente, um pouco mais se, como se vê, o conhecimento do Bem for alcançado somente após um programa educacional de cinquenta anos. Como já indiquei, saber que a justiça é um bem psíquico intrinsecamente desejável ainda nos deixa com o problema de por que não devemos colocá-lo ao lado de outros e depois fazer um julgamento utilitarista pessoal sobre os méritos relativos de alcançar um bem ou outro. A irrelevância de tal julgamento repousa na descoberta da verdadeira identidade de alguém como sujeito intelectual. Na passagem acima, parece que o conhecimento que consiste nessa descoberta está convergindo para o conhecimento do Bem.

Essa interpretação é reforçada uma página depois. Sócrates acrescenta:

Também não está claro que muitas pessoas escolheriam coisas que são consideradas justas ou bonitas, mesmo que não sejam, e agiriam, adquiririam coisas e formariam crenças de acordo? No entanto, ninguém está satisfeito em adquirir coisas que simplesmente parecem boas. Pelo contrário, todo mundo procura as coisas que são boas. Nesta área, todo mundo despreza a aparência. (Reeve trad. ligeiramente modificada)

Nesta passagem, as palavras “crenças” (τὰ δοκοῦντα), “parecem ser” (τὰ δοκοῦντα) e “aparência” (δόξα) têm o mesmo significado raiz. Reforçando a discussão anterior dos filósofos e dos amantes de vistas e sons que são enamorados de “crença”, o objetivo da presente passagem é que a maioria das pessoas se contenta com aparente justiça e beleza. Mas é assim porque elas supõem que a aparente justiça e beleza são realmente boas, não porque acreditam que são aparentemente boas enquanto não sendo realmente boas. Elas supõem que estes são bens físicos e psíquicos, como outros bens. De fato, porém, elas não ficariam satisfeitas com justiça, a menos que isso fosse realmente, não apenas aparentemente bom. Por que, então, deveríamos supor que o que é um bem psíquico não é realmente bom? Afinal, se sabemos ou não que a Forma de Justiça participa do Bem, ela de fato assim o faz. Portanto, participar da Justiça significa participar de algo realmente bom. Por que alguém deveria se preocupar que ser justo poderia jamais ser algo outro que realmente bom? Mais uma vez, à luz do exposto, o que é um bem real ou verdadeiro depende da identidade de alguém. O que é apenas aparentemente bom pode ser preferido ao que é realmente bom, pois o aparentemente bom sempre aparece para o sujeito como realmente bom. E, mais uma vez, adjudicando entre bens, pode-se muito bem fazer o juízo utilitário que o bem aparente que não é realmente bem deve ser preferido sobre o bem aparente que é realmente bem. A justiça descrita no livro IV pode ser realmente boa para um ser humano, mas se for verdade que não somos realmente seres humanos, mas sim intelectos, nosso bem real será diferente da vida das virtudes da alma encarnada.