Górgias 476a-478e — Por que vale mais expiar sua falta que não expiá-la?

Passemos agora ao exame do outro ponto sobre que estávamos em desacordo: se o maior mal para quem comete injustiça é ser punido, conforme sustentas, ou escapar ao castigo, de acordo com o meu modo de pensar? Consideremos a questão da seguinte maneira: sofrer pena por alguma falta ou ser punido justamente, não te parece que seja a mesma coisa?

Polo — Sem dúvida.

Sócrates — E não poderias afirmar que tudo o que é justo é belo, enquanto justo? Reflete antes de falar.

Polo — Parece-me que é assim mesmo, Sócrates.

XXXII — Sócrates — Considera também o seguinte: se alguém faz alguma coisa, não é forçoso haver quem sofra os efeitos do seu ato?

Polo — Penso que sim.

Sócrates — E quem sofre a ação do agente, não ficará como o outro faz? O que digo é o seguinte: se alguém bate, não é forçoso haver alguma coisa batida?

Polo — Necessariamente.

Sócrates — E se quem bate o faz com força e de pressa, não ficará batida do mesmo modo a coisa batida?

Polo — Sim.

Sócrates — Logo, o sofrimento da coisa batida será como a ação de quem bate?

Polo — Perfeitamente.

Sócrates — E não será também certo que se alguém queima, alguma coisa ficará queimada?

Polo — Como não?

Sócrates — E se ele queimar em excesso e a ponto de produzir muita dor, a coisa queimada ficará conforme queima o queimador?

Polo — Perfeitamente.

Sócrates — E se alguém cortar, não se dará a mesma coisa? Algo ficará cortado.

Polo — Sim.

Sócrates — E no caso de ser grande o corte, profundo e doloroso, não ficará a coisa cortada de acordo com o corte que lhe infligiu o cortador?

Polo — É claro.

Sócrates — Vê agora se concordas, em tese, com o que eu disse há pouco, que conforme seja a ação do agente, assim será o sofrimento do paciente.

Polo — Concordo.

Sócrates — Concedido esse ponto, dize-me se ser punido é sofrer ou agir?

Polo — Sofrer, Sócrates; forçosamente.

Sócrates — Da parte de alguém que atua?

Polo — Como não? Da parte de quem castiga.

Sócrates — E quem castiga com razão, castiga justamente?

Polo — Sim.

Sócrates — E pratica uma ação justa, ou não?

Polo — Justa.

Sócrates — Então, quem é castigado em punição de alguma falta, sofre justamente?

Polo — Parece que sim.

Sócrates — E não concordamos que o justo é também belo?

Polo — Perfeitamente.

Sócrates — Nesse caso, quem castiga comete uma ação bela, e a pessoa punida sofre essa mesma ação?

Polo — Sim.

XXXIII — Sócrates — Mas, se é bela, é também boa, por ser agradável e útil?

Polo — Necessariamente.

Sócrates — Então, quem é punido sofre o que é bom?

Polo — Parece.

Sócrates — E tira vantagem disso?

Polo—Sim

Sócrates — Será a vantagem que imagino, por tornar-se melhor sua alma, no caso de ser ele punido justa mente?

Polo — Com toda a probabilidade.

Sócrates — Então, fica livre da maldade da alma quem é punido?

Polo — Sim.

Sócrates — Nesse caso, fica livre do maior dos males? Examina a questão da seguinte maneira: Para quem acumula riqueza, achas que pode haver outro mal além da pobreza?

Polo — Não; é a pobreza mesmo.

Sócrates — E com relação às condições do corpo, não dirias que a fraqueza seja um mal, ou as doenças, ou a feiura e tudo o mais da mesma espécie?

Polo — Sem dúvida.

Sócrates — E não és de opinião que na alma pode haver maldade?

Polo — Como não?

Sócrates — E não classificas como tal a injustiça, a ignorância, a cobardia e seus semelhantes?

Polo — Perfeitamente.

Sócrates — Assim, para a riqueza, o corpo e a alma, por serem três, indicaste três modalidades de males: pobreza, doença e injustiça.

Polo — Sim.

Sócrates — E agora, qual desses males é o mais feio? Não será a injustiça e, de modo geral, os vícios da alma?

Polo — Sem comparação.

Sócrates — Sendo a mais feia, terá de ser também a pior?

Polo — Por que dizes isso, Sócrates?

Sócrates — É o seguinte: em todos os casos, o que é feio só chega a ser isso ou por proporcionar a maior ou o maior dano, ou por ambas as coisas, de acordo o que assentamos antes.

Polo — É certo.

Sócrates — E agora mesmo, não concordamos que o que há de mais feio é a injustiça e os vícios da alma em geral?

Polo — Concordamos, de fato.

Sócrates — Logo, é mais feio por ser molesto e doloroso em alto grau, ou por causar dano, se não o for por ambas as coisas?

Polo — Necessariamente.

Sócrates — E ser intemperante, injusto, cobarde e ignorante, não é mais doloroso do que ser pobre ou doente?

Polo — Não me parece, Sócrates, aceitável essa conclusão.

Sócrates — Para que a maldade da alma ultrapasse e todas as outras em ser a mais feia, se não é por ser a mais dolorosa, como disseste, sê-lo-á pela grandeza do dano ou pelo mal prodigioso que pode causar.

Polo — É claro.

Sócrates — Mas o que se destaca pelos maiores danos que possa causar, tem de ser o maior mal que existe.

Polo — Sim.

Sócrates — A injustiça, a intemperança e os demais vícios da alma, não são os maiores males do mundo?

Polo — Parece que sim.

XXXIV — Sócrates — E agora, qual é a arte que nos livra da pobreza, não é a economia?

Polo — É.

Sócrates — E da doença? A medicina?

Polo — Necessariamente.

Sócrates — E da maldade e da injustiça? Se te atrapalhas com o problema assim formulado, considera o seguinte: para onde e para quem levamos os doentes do corpo?

Polo — Para os médicos, Sócrates.

Sócrates — E os que cometem injustiça ou são intemperantes?

Polo — Referes-te aos juízes?

Sócrates — Para receberem castigo, não é verdade?

Polo — De acordo.

Sócrates — E não é usando de alguma justiça que punem com razão os que punem?

Polo — E evidente.

Sócrates — Logo, a economia livra da pobreza; a medicina, da doença; e o castigo, da intemperança e da injustiça.

Polo — Parece.

Sócrates — E de todas elas, qual será a mais bela?

Polo — A que te referes?

Sócrates — Economia, medicina, justiça.

Polo — Sem comparação, Sócrates, a justiça.

Sócrates — Não é por proporcionar o maior prazer, ou as maiores vantagens, ou por ambas as coisas, visto ser a mais bela?

Polo—Sim.

Sócrates — Será porventura agradável ficar sob tratamento médico, e os que estão sendo tratados alegram-se com isso?

Polo — Penso que não.

Sócrates — Isso, porém, tem sua utilidade. Ou não tem?

Polo — Sim.

Sócrates — Pois liberta de um grande mal, valendo a pena, por conseguinte, suportar dor para recuperar a saúde.

Polo — Como não?

Sócrates — E quando será mais feliz o homem, no que diz respeito ao corpo: quando se acha sob tratamento médico, ou quando não sofre de nenhuma doença?

Polo — Evidentemente, quando não sofre de nada.

Sócrates — É que a felicidade, ao que parece, não consiste em livrar-se alguém dos males, mas em conservar-se de todo livre deles.

Polo — É isso mesmo.

Sócrates — E então? De dois doentes do corpo e da alma, qual é o mais infeliz: o que se submete a trata mento e se liberta da doença, ou o que não é tratado e continua com ela?

Polo — A meu ver, o que não é tratado.

Sócrates — Já não dissemos que receber castigo é libertar-se do maior mal, a maldade?

Polo — Realmente.

Sócrates — É que o castigo nos deixa mais prudentes e justos, atuando a justiça como a medicina da malda de.

Polo — Sim.

Sócrates — Felicíssima, por conseguinte, é a pessoa isenta de vício na alma, pois já vimos ser isso o maior dos males.

Polo — É evidente.

Sócrates — Em segundo lugar, vem a pessoa que ficou livre do vício.

Polo — Parece que sim.

Sócrates — Isto é, a pessoa que admoestamos, ou repreendemos, ou que foi punida.

Polo—Sim.

Sócrates — Nas piores condições, portanto, vive quem é injusto e não se libertou de sua injustiça.

Polo — É o que se conclui.