Festugière — A Revelação de Hermes Trismegisto — Livro I Introdução — A Era e o Meio Resumo da Introdução do Livro I — A Astrologia e as Ciências Ocultas
O Declínio do RacionalismoO período que vai de Trajano ao último dos Severos é uma era de contrastes. Em aparência, parece que jamais o mundo antigo atingiu grau semelhante de civilização. Os fortes exércitos de Roma mantinham os Bárbaros nas fronteiras do Império. A Oikoumene estava em paz.
É a era onde os retores viajavam de cidade em cidade para pronunciar discursos de aparato ao louvor da cidade que os acolhia ou à glória do Príncipe.
O século II conheceu uma verdadeira renovação intelectual que não se deve subestimar a importância na história do saber humano: pois são, em grande parte, escritores desta era, Nicômaco, Ptolomeu, Heron, Galiano entre outros, que determinaram a forma e os limites deste saber por mais de mil anos. Neste século, se generalizou o emprego e a noção de enkuklios paideia.
Seria injusto falar, em sentido absoluto, do tempo dos Antoninos e dos Severos como de uma época de decadência. E no entanto, visto de mais perto, a decadência é certa. Porque nenhuma das obras do século II é uma obra original; imita-se ou compila-se e sistematiza-se um dado adquirido.
É preciso reconhecer que o espírito científico estava então em declínio; ou melhor a renascença do século II só retardou em aparência o declínio começado desde o século I antes de nossa era.
A decadência do espírito científico teve por correlativo um crescimento não tanto da verdadeira piedade mas de uma exaltação da piedade, uma espécie de perversão da piedade: o homem se inclinando a demanda à divindade, sob forma de revelação pessoal, aquilo que ele buscava obter anteriormente unicamente pelas forças da razão.
Esgotamento do racionalismo grego, reduzido a diferentes escolas se duelando sobre os princípios. Consequente abertura ao aporte místico irracional do Oriente. Renascença do Pitagorismo, ora como Igreja, até mesmo Ordem religiosa. Pitagorização de Platão.
Os Profetas do OrienteIr além da pitagorização de Platão, em direção a uma sabedoria ancestral que seria revelação primordial.
Legitimação do texto quanto mais antigo fosse.
A miragem oriental seduz as imaginações do Império Romano.
Testemunhos aqui e ali desta recuperação da mensagem oriental, especialmente a mais ancestral.
Gnose, apocalipses, oráculos só são valorizados se vindos do Oriente.
Os Oráculos de Hystaspe são desde o tempo de Augusto difundidos, ganhando valor de autoridade.
O Mago Ostanes se torna renomado como tendo acompanhado Xerxes em suas expedições à Grécia.
O Mago mais célebre é Zoroastro sob o nome do qual circula desde a época alexandrina uma abundante literatura sagrada, “física” e mágica. Zoroastro era a autoridade maior para tudo que dizia respeito as coisas da alma as vias da salvação.
A Visão de DeusUm traço da época: a demanda de Deus e o gosto do deserto em aliança natural.O monge, o eremita, aquele que quer ficar “sós a só” com Deus: “monos pros monon”.
As formações verbais sobre monos, “só”, se multiplicam: “monosis”, solidão; “monotes” ou “monotes bios”, vida solitária; “monargion”, terra deserta; “monazein”, viver em solidão; “monasmos”, estado do solitário; “monasterion”, célula daquele que se devota à vida solitária. Estes nomes todos nasceram fora do cristianismo, antes dos Padres do deserto.
Insistia-se à época sobre a “eremia”, o deserto, como lugar propício à tranquilidade da alma, “heremia”.
O habitante do deserto, o eremita (eremites) se torna um tipo popular na literatura greco-romana.
A maioria das lendas nos conduz ao Egito, com efeito o paraíso dos eremitas.
Peregrinações eram então realizadas a ruínas de templos da antiguidade egípcia, afastados das cidades, e ainda habitados por poucos sacerdotes, para desfrutar da solidão e do silêncio.
Busca de ver o deus em sonho ou em estado de vigília, nada mais desejável, nada mais duvidável. Busca de revelações nestas asceses solitárias e em sonhos, nestas condições de eremita.
A visão oracular ou especialmente a visão onde o deus revela não algo contingente que interessa ao futuro do questionador, mas uma doutrina de religião, de moral ou de ciência. A doutrina hermética se associa a este tipo.
Declínio da racionalidade grega em prol da mística oriental em busca de revelações dos deuses, seja sobre coisas espirituais (doutrina de Deus e da alma) seja sobre uma ciência ou pseudo-ciência (filosofia, astrologia, alquimia, etc).
No tocante a primeira revelação, o que se busca é a gnose, que antes investigada por Platão e Aristóteles, e agora deixava os caminhos da razão em prol dos caminhos da revelação mística.
Hermes-Thoth e a Literatura HerméticaOs gregos deram o nome de Hermes a um deus egípcio, Thoth, originalmente um deus local, adorado em Khmonou (hoje em dia Achmounein) no Médio Egito, que os gregos fizeram “a cidade de Hermes”, Hermopolis, que se denominava a Grande para a distinguir de outra Hermopolis no delta do Nilo.Os animais que representavam Thoth eram o cinocéfalo e a ibis.
Desde a mais alta antiguidade Thoth foi identificado ao deu Lua, Ioh, adorado no Alto e no Baixo Egito; por esta identificação ele é considerado o inventor da cronografia, contabilizando dias, meses, anos, medindo o tempo, definindo a duração da vida de cada homem, mestre do destino.
Na constituição dos mitos de Osíris, rei do delta, Thoth foi o secretário, escriba de Osíris, protótipo destes escribas que sempre tiveram um papel relevante na chancelaria faraônica.
Tornou-se o inventor da escritura, e por conseguinte de todos os ramos de ciências e de artes que dependem da escritura e estão ligadas aos templos: magia (pronúncia e tonalidade das fórmulas mágicas), medicina, astronomia, astrologia, teosofia, alquimia.
Thoth seria o criador do mundo, por seu domínio da voz, da palavra, da encantação, segundo a teologia elaborada pelos sacerdotes de Hermopolis.
Os gregos ao conhecerem a tradição egípcia, associaram seus deuses aos deuses do panteão egípcio; assim Thoth foi considerado como representação de Hermes (Mercúrio para Roma).
Embora Hermes não seja para os gregos o inventor da escrita, atribuída a um povo estrangeiro, os fenícios, ele está associado às artes literárias e a educação liberal. Sócrates, no diálogo de Platão, o Crátilo, faz derivar o nome de Hermes de hemeneus, “intérprete”.Pan, filho de Hermes, é definido como o deus “que faz tudo conhecer, quer dizer como a linguagem (logos) ele mesmo ou o irmão da linguagem.
No início da era cristã, Hermes “portador da palavra” é uma noção popular.
O epíteto de Trismegisto, “três vezes muito grande”, é uma espécie de contaminação do superlativo grego “megistos”, cuja aplicação a um deus é comum no Egito, e do superlativo egípcio por repetição do positivo, “grande grande”, em grego “megas megas”; a substituição natural desta repetições, encontradas nas referências a Hermes, por tris-megistus, três vezes grande.
Por ser o inventor da escrita, os livros mais antigos lhe são atribuídos.
Não se encontra uma literatura de Hermes em língua egípcia, na época faraônica.
Por outro lado desde o tempo de Ptolomeu existia uma literatura hermética grega.
Quem seriam os autores desta literatura, sacerdotes egípcios ou gregos instalados no Egito?A literatura hermética apresenta as formas mais variadas: escritos astrológicos e de medicina astrológica; receitas de magia; obras de alquimia; pequenos tratados de filosofia ou de teosofia; questões de astronomia, de física, de psicologia, de embriogenia, de história natural; tudo que com a decadência do racionalismo grego se tornou ciência.
Os escritos fecham em geral com uma eulógia ou algo edificante.
Não se vê traços de cerimônias particulares para pretensos féis de Hermes.
Improvável existência de confrarias herméticas
Diversidade da literatura hermética; analogia com os outros ramos similares do gênero profético; emprego universal de um quadro de expressões retirados dos mistérios; ausência de indicações de uma hierarquia sagrada ou de sacramentos; repugnância a cultos de toda espécie, que não seja a simples oração.