Brun: Destino do heraclitismo

A sofística de Protágoras reterá de Heráclito a tese do fluxo ininterrupto do testemunho sensível e extrairá a conclusão de que, dado que tudo muda e que as sensações são o nosso único meio de conhecimento, devemos ater-nos a um imobilismo e a um subjetivismo agnóstico, que faça do homem individual a medida de todas as coisas, medida momentânea que jamais permanece igual a si mesma.

Platão, provavelmente através de Crátilo, guardou do Efésio a ideia de que todas as coisas são arrastadas pelo devir para a corrupção e a morte. Mas, para Platão, o devir reina apenas no mundo sensível e torna indispensável a referência às Ideias eternas, que são as medidas imutáveis do que devém.

Entre os antigos conviria citar ainda Eróstrato, que imortalizou o seu nome incendiando o templo de Éfeso, para que a sua recordação permanecesse gravada na memória dos homens. Encarna posteriormente o gosto das aventuras no ser em catástrofe, sejam aventuras de ordem individual ou política.

Marx e Lenine viram em Heráclito o pai do materialismo dialéctico. Mas é sobretudo1 Hegel e Nietzsche que conviria citar. Hegel reivindica Heráclito como precursor; ora, parece bem que o faz de forma absolutamente injustificável. Com efeito, o hegelianismo é uma filosofia da história, noção completamente estranha a Heráclito. Além disso, como bem mostra a teoria do Eterno Retorno, o devir heraclitiano não é um devir do Ser, mas um devir no Ser. O devir é essencialmente cíclico, pelo que a noção de Aufhebung tinha de ser-lhe totalmente desconhecida.

Menos ainda devem aproximar-se de Heráclito as concepções dialécticas, que fazem do homem o ser criador de um sentido que vai alterando sem cessar, ao longo da história. Heráclito, convém não esquecer, não é apenas o filósofo do devir, é também o filósofo do Logos.

Nietzsche pretendeu ver em Heráclito o filósofo que anuncia a «inocência do devir». Utilizando o processo retórico da prosopopeia, fá-lo falar assim: «Vejo apenas o devir. Não vos deixeis iludir! É a vossa vista curta e não a essência das coisas que é a causa de acreditardes perceber um pouco de terra firme no mar do devir e do transitório. Dais nomes às coisas como se tivessem uma duração determinada, mas o próprio rio a que desceis pela segunda vez não é o mesmo que antes.»2 Segundo Nietzsche, Heráclito seria o filósofo que, de antemão e de uma vez por todas, teria derrubado todos os platonismos, ao afirmar que não há cópia ou modelo, mas somente um devir, pelo qual o sábio deve deixar-se arrastar. O jogo cósmico daria à existência a embriaguez de um salto em frente e de uma perpétua gênese para além do bem e do mal. Mas semelhante estetismo niilista encontra-se nos antípodas do que Heráclito afirma. Ele não nega de modo nenhum o Modelo, pois escreve que «o mais sábio dos homens comparado com a divindade assemelha-se a um macaco, quanto a sabedoria, a beleza e a tudo o mais» (fgt. 83). Não há lugar, em Heráclito, para um êxtase no e pelo devir, mas para um Sentido que domina o que flui.

Falando de Heráclito, Karl Jaspers (1883-1969) escreve: «Sendo o Englobante, o Logos é simultaneamente indeterminado e infinitamente determinável»3; o mesmo se passa com o pensamento de Heráclito, que se revela, escondendo-se.


  1. Cf. em Kostas AXELOS, Héraclite et la philosophie, p. 215, uma visão sinóptica acerca da influência do pensamento de Heráclito

  2. La naissance de la philosophie, trad. G. BIANQUIS, p. 55. 

  3. K. JASPERS, Les grands philosophes, trad. franc., Paris, 1963, p. 618. 

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