Brun: O Homem e a sabedoria

Heráclito é tradicionalmente apresentado, senão como um aristocrata no sentido social do termo, ao menos como um homem que desprezava a multidão e não hesitava em dizer: «Um só homem vale para mim milhares, se for o melhor.» (fgt. 49) Para ele, com efeito, «as opiniões humanas não passam de jogo de crianças» (fgt. 70) e se os homens nobres preferem acima de tudo a glória eterna às coisas perecíveis, a maioria sacia-se como animais de carga (fgt. 29). As suas invectivas dirigiam-se tanto aos que se extraviavam nas superstições como aos cidadãos que se conduziam como insensatos na direção dos negócios da cidade. Dos primeiros afirmava:

«Esforçam-se por se purificar, manchando-se com sangue, como alguém que, enterrado na lama, quisesse lavar-se com ela. Todo aquele que o visse agir deste modo tomá-lo-ia por insensato. E é a tais imagens dos deuses que se dirigem as suas orações, semelhantes a alguém que falasse às casas, sem saber o que são os deuses e os heróis.» (fgt. 5)

Dos segundos, afirmava:

«Os Efésios deveriam enforcar-se e abandonar a cidade às crianças, eles que exilaram Hermodoro, o homem mais notável dentre eles, dizendo: ‘Que ninguém entre nós ceja muito notável. Se houver algum, que se vá para outro lado e com outros’.» (fgt. 121) Com efeito, os homens confiam nos «cantores de rua e tomam a multidão por guia, sem saber quão numerosos são os maus e tão raros os bons» (fgt. 104).

Por isso lançava este voto à cabeça dos concidadãos: «Que a riqueza, ó Efésios, nunca vos falte, para que o vosso mau procedimento seja manifesto.» (fgt. 125 a) Aliás, Heráclito não quis herdar a magistratura que o pai possuía e recusou dar leis a Éfeso, pretextando que a corrupção dos habitantes da cidade era tão grande que já não havia remédio possível. Todavia, nunca abandonou a sua cidade; convidado para Atenas, recusou-se a ir para lá e declinou igualmente as honras que Dario lhe oferecia na Corte da Pérsia.

Heráclito desprezava ainda bastante os antepassados: «Homero merecia ser expulso das assembleias e apanhar bastonadas, bem como Arquíloquo» (fgt. 42); Pitágoras é por ele qualificado de «rei dos tagarelas» (fgt. 81). Quanto a Hesíodo, Xenófanes, Hecateu e sempre Pitágoras, não passavam de eruditos sem inteligência (fgt. 40).

Mas se Heráclito dava provas de um certo pessimismo em relação àqueles com quem diariamente convivia, a tal ponto que recebera o nome de okloloidoros, isto é, depreciador da populaça, não menos pessimista era a sua concepção do homem, estreitamente relacionada com as ideias já expostas. Para ele, a alma do homem é fogo e deve permanecer seca; na embriaguez torna-se úmida, conhece a loucura e morre. Segundo Diógenes Laércio, Heráclito contraiu uma hidropisia nos últimos dias de vida e perguntou aos médicos como fariam para transformar a chuva em seca. Não tendo eles compreendido o enigma, Heráclito fechou-se num estábulo, pensando que o calor do estrume faria desaparecer a água que o atormentava.

Que a alma humana seja um fogo e uma exalação quente, pode considerar-sé uma proposição orientadora de uma espécie de psicofisiologia elementar. Tal ideia deve igualmente ligar-se ao simbolismo do fogo, que se encontra por detrás de expressões como «calor da vida», a «chama da paixão» ou a «febre do amor que nos consome». Além disso, e sobretudo, deve relacionar-se com tudo o que Heráclito diz do Logos e do fogo.

As concepções de Heráclito respeitantes à alma humana colocam-nos, muitas vezes, perante grandes dificuldades de interpretação, porque os fragmentos que sobre o assunto possuímos contam-se, talvez, entre os mais obscuros dos que chegaram até nós. Com efeito, Heráclito afirma que é um prazer para as almas entrar na vida, mas acrescenta que a nossa vida nasce da morte das almas e a sua vida nasce da nossa morte (fgt. 77). Não convirá, aqui ainda, pensar na palavra de Anaximandro e compreender que o prazer da vida é um prazer culpado, que a alma paga com uma espécie de morte? Não é a vida dos indivíduos uma espécie de exílio longe da fonte original e não é a sua própria individualidade a raiz da infelicidade da consciência? Por outro lado, se a vida das almas nasce da nossa morte, não será porque se abrem a um além, no qual reencontram o país natal que haviam abandonado?

Não poderá relacionar-se com a mesma ideia o fragmento 62, que continua, apesar de tudo, sibilino? «Os imortais são mortais e os mortais, imortais; uns vivem da morte dos outros, esses outros morrem da vida daqueles». Clémence Ramnoux vê nesta ideia um prelúdio ao tema nietzschiano da morte de Deus1; talvez se deva entender que, se Deus vive da morte dos homens e o homem morre da vida de Deus, é porque só há existência na tragédia do limite. O imortal vive da morte dos mortais que regressam ao seu seio e os mortais morrem por não serem imortais. Por isso, os imortais são mortais, quando entram na vida, e os mortais são imortais, quando, pela morte, se abrem ao que os reintegra no ciclo.

Talvez se possa interpretar no mesmo espírito um outro fragmento misterioso:

«Se não fosse em honra de Diónisos que realizam o cortejo e cantam o hino fálico, cometeriam o mais vergonhoso dos atos. Mas Hades é o mesmo que Diónisos, que os induz ao delírio e ao entusiasmo báquico.» (fgt. 15)

Clemente de Alexandria fazia uma leitura cristã deste texto e pensava que significava que todos os que cantam a Diónisos e se entregam a cerimônias vergonhosas serão precipitados nos infernos e julgados por Hades. A. Delatte2 pede que se aproxime este fragmento do fragmento 68, onde se diz que «os mesmos remédios curam doenças terríveis e libertam as almas das desgraças que residem na geração»; o texto torna-se então muito menos paradoxal. Com efeito, Hades é na verdade o deus da morte, mas a morte é ao mesmo tempo uma libertação para a alma. Por isso, como acentua Delatte, Hades não é mais que o símbolo da vida escondida sob a morte aparente e preside, finalmente, ao renascer da alma, enquanto Diónisos simboliza a embriaguez da vida. Por isso, dizer que Hades é o mesmo que Diónisos é repetir que a estrada que sobe e a que desce são uma e a mesma. Como diz Delatte:

«Vida o morte alternam constantemente para Heráclito, como juventude e velhice, vigília e sono, sem contar que nenhum destes estados se encontre jamais isento de qualquer mistura […]. É possível compreender, agora, melhor o que significa Hades para Heráclito. É o símbolo da vida escondida sob a morte aparente, é o deus que preside ao renascer da alma, […]. E Diónisos? No que tem, segundo a concepção do vulgo, de mais oposto a Hades, pode considerar-se como o deus da exaltação da vida, o símbolo do entusiasmo religioso.»

O homem é essencialmente o ser exposto; é exposto na medida em que é presença saída do abandono do Uno. É exposto na medida em que a sua condição é trágica. Diz Heráclito: «É difícil lutar contra o seu coração, porque o que deseja compra-se à custa da alma.» (fgt. 85) Convirá entender, simplesmente, por isso que a paixão perde a nossa alma, o que não passaria de lugar-comum, ou, antes, que o desejo que nos fala ao coração é o de nos arrancar à individualidade a que preside a nossa alma e à qual se encontra ligada ?


  1. Clémence RAMNOUX, Héraclite, ou l’homme entre les choses et les mots, Paris, 1959, p. 70. 

  2. A. DELATTE, La conception de l’enthousiasme chez les philosophes présocratiques, Paris, 1934. 

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