Eis agora o mais extraordinário dos “pré-socráticos”. Da Antiguidade até nossos dias ele foi compreendido nos sentidos mais divergentes; resta-nos hoje de seu livro menos de cento e trinta fragmentos de uma a cinco linhas, o que não é negligenciável, se se leva em conta os testemunhos que a eles se juntam. Entretanto, o fato dos Antigos haverem-no já denominado “o Obscuro” e o “Fazedor de Enigmas” basta para mostrar que a pobreza relativa de nossas fontes não é a única razão das divergências modernas e dos riscos que incorremos ao tentar uma interpretação. Ninguém mais que ele teve o estilo do oráculo, que quer “anunciar por sinais” e se furta à passividade e à suficiência do vulgar.
Nascido por volta de 540 a.C. na Jônia, em Éfeso, cidade grega sob tutela dos persas, pertencente à alta aristocracia dessa cidade, à qual se sentia ligado e cuja democracia moderada, que sucedera a conflitos violentos, contudo, desprezava com ostentação, inteiramente voltado, parece, para a cultura grega, mas talvez também inspirado, apesar de tudo, pelo zoroastrismo, e aliás penetrado por sua solidão, afastado de todas as tradições do pensamento, animado por uma religiosidade afim dos mistérios de Eleusis e, ao mesmo tempo, porta-voz em prosa de uma verdade universal e acessível a todos sem iniciação nem ritual, o personagem anuncia as contradições às quais a doutrina deve seu brilho. Mas é talvez justamente evitando submeter, se possível, um tal pensamento à norma da coerência analítica sobre a qual a filosofia clássica no essencial quis se regular, que se conserva as melhores chances de não se errar muito o alvo ao se procurar compreender o heracliteísmo.
Heráclito não se esforça, mais ou menos inabilmente, por expulsar as contradições da realidade e do pensamento e não é tampouco insensível à virtude da coerência analítica. Ele pensa de um modo outro e mais profundo e sabe-o. O pensamento analítico não pode ser considerado como pura e simplesmente posterior, porque, sem explicitar suas formas nem assegurar-lhe uma autoridade contínua, os milesianos começavam a praticá-lo, sobretudo Anaxímenes e, depois deles, Xenófanes e Pitágoras. Se ele marca uma data muito importante, assim como veremos, o vigoroso esforço de elucidação de Parmênides não deixa de ter ligações com o passado. De sorte que, em lugar de procurar erros e deslizes lógicos nos fragmentos de Heráclito, coisa a que somos facilmente tentados, é melhor levá-los a sério como revelando pelo menos as insuficiências do pensamento analítico, sempre em dificuldades com o devir e a novidade e incapaz de efetuar plenamente seu ideal de não-contradição quando distribui o real em seres e em relações, em seres distintos e fixos e em relações que unem esses seres. Platão terminará por compreender e integrar à sua lógica alguma coisa do heracliteísmo e, ainda que toda aproximação muito estreita de Heráclito com os dialéticos modernos leve a erros manifestos, não se deve esquecer que, passando por Platão e seu longínquo discípulo do século V, Proclos de Bizâncio, segue-se uma filiação que liga a Heráclito, por meio de transformações e contribuições diversas, o próprio Hegel. Heráclito não elaborou certamente um pensamento dialético complexo; antes lutou com a linguagem para fazer transmitir, pela fulguração dos choques verbais, o sentimento, elementar talvez, em todo caso vigoroso, que é contido na fórmula cardinal segundo a qual “o Combate é o Pai e o Rei de tudo”. Este que assim fala só podia condenar Pitágoras e, de fato, ataca-o duramente, oposição que fornece o bom fio condutor.
O pitagorismo se pretende pacificador e conciliador. Heráclito replica pela guerra universal e a ausência de toda conciliação e de toda fusão de opostos. Ao mesmo tempo censura expressamente a Pitágoras a polimatia, isto é, o saber que acumula minuciosamente os detalhes, por vã erudição sem profundidade nem real unidade, literalidade análoga à recitação mecânica de uma fórmula sagrada. Não se trata, pois, de substituir um enciclopedismo artificial por uma visão voluntariamente disparatada (a diferença seria diminuta) e Heráclito concebe uma unidade profunda do cosmos: se se recorda que no pitagorismo a unidade suprema desempenha um papel primordial, cumpre considerar que Heráclito a considera como nula, porque acrescentada de maneira factícia. A verdadeira unidade é logo imanente e, de Pitágoras, o que é recusado é essencialmente o dualismo. Neste sentido, Heráclito confirma o monismo milesiano, ao qual o liga também sua hostilidade literal das representações místicas que acompanha esse rnonismo e que se exprime nele numa cosmologia naturalista próxima da tradição milesiana. Todavia, o importante para ele não é se abandonar à incansável “investigação” dos milesianos.
O que conta é apreender a unidade profunda das forças em jogo no cosmos e Heráclito insiste sobre a atitude de espírito que é preciso cultivar; nada de revelação passiva: é preciso estar desperto, atento, ativo para captar em nós e nas coisas, além de toda falsa sabedoria da reserva mental, a organização do “Logos”. Quase todos os homens se contentam preguiçosamente com uma sabedoria sonhada que se limita a particularidades individuais e imobiliza o devir nas constatações sensíveis (admirar-se-á, com Nietzsche, que, aos olhos de Heráclito, o testemunho imediato e passivo dos sentidos provoca, contrariamente ao que a respeito julga toda a tradição posterior, um erro fixista). O Logos é nossa razão e a Razão de tudo, indissociavelmente; Razão ou “Verbo”, Lei, Unidade, Força motora e criadora do devir, que pode ser dita “separada” enquanto universal, mas que deve ser do mesmo modo considerada como confundida com o cosmos em devir, atuante que é, até nos homens que o ignoram. É também o Fogo, fogo celeste, “éter” divino e o raio que, segundo a imagem antiga, “governa como piloto”, o mundo e o fogo que vemos, em nossa experiência mais próxima, devorar luminosamente os outros elementos: sempre ao mesmo tempo outro que a diversidade do mundo e secretamente idêntica à própria vida do mundo. Mas essa universal Unidade deve ainda se identificar à Guerra, de onde partimos. Ora, a Guerra não é pluralidade ou, pelo menos, dualidade? Não apenas: a guerra une os que ela coloca em combate, o conflito atesta uma afinidade. Poder-se-ia assim desenvolver a intuição de Heráclito: uma unidade simples é fácticia, uma pluralidade inorgânica não constitui tampouco um mundo; só a oposição, que a mais familiar e mais antiga experiência reconhece, implica a unidade da diversidade e a identidade das diferenças, pois os termos opostos só existem uns pelos outros (por exemplo, saúde e doença, bem e mal) mesmo mantendo entre eles uma diferença irredutível. O monismo de Heráclito se afirma com dificuldade às custas de um pluralismo conflitual / solução antidualista que, sem ser a única concebível, como se pode admitir, constitui em todo caso uma notável radicalização do esquema milesiano.
As coisas se passam de um outro modo que o imaginava Homero, que aspira a uma paz que seria aniquilamento. Só a discórdia é criadora; existir é ser quer um combate, quer em combate, num movimento em que a pluralidade se mantém pelo conflito, a unidade pela identidade profunda dos antagonistas. Um olhar ingênuo e adormecido como o de Pitágoras crê ver por todo o mundo casos maravilhosos de tranquilas e imóveis harmonias. Quando não são arranjos inertes e inconsistentes, absolutamente desprovidos de unidade, essas harmonias aparentemente tranquilas e precisas consistem, em sua realidade última, numa luta temporariamente indecisa entre forças contrárias; a bela imobilidade da determinação visível recobre um movimento que escapa à nossa vista. Assim, o arco e a lira (emblema de Apolo tão caro aos pitagóricos) devem, cada um, sua realidade, sua capacidade funcional, apenas ao jogo de forças divergentes da madeira e das cordas; pouco importa que a corda esteja atada à madeira, se não se realiza o equilíbrio, aliás necessariamente precário, das tensões em luta. Que a corda ou a madeira venham a se romper, o arco não é mais arco; num relâmpago, as tensões constitutivas se manifestam por um movimento bem visível, antes da paz da morte. Essa harmonia frágil permanece inferior, sem que possa representar figuradamente a mais alta. “O que se opõe a si mesmo está em acordo consigo mesmo (ou mais literalmente: o que se afasta de si próprio, em si se reúne», harmonia de tensões contrárias como do arco e da lira.” A harmonia ganha em consistência e estabilidade quando, em vez de ser a manifestação de um movimento visível, se esconde ao contrário por trás do movimento manifesto. A mudança tem sua constância e se produz em equilíbrio dinâmico; mas ela não é fácil de ser apreendida, pois “a natureza ama o segredo”. Por exemplo, o rio guarda sua identidade no e pelo movimento contínuo de suas águas e é preciso compreender do mesmo modo como a alma se mantém em vida pelo movimento contínuo que a renova. Seria natural pensar aqui nas concepções modernas do organismo vivo e com mais razão ainda nas descobertas recentes acerca dos equilíbrios interespecíficos; mas essa harmonia entra no jogo de uma mais secreta ainda, que regula primordialmente o cosmos inteiro e que não é outra senão o Logos agonístico. O Combate gerador e organizador faz predominar ora um termo, ora o outro, nos pares de opostos que se entredevoram segundo um sistema de compensações sem dúvida ao mesmo tempo sucessivo e simultâneo, cuja “medida” e cujos limites resultam de sua profunda unidade discordante. A harmonia suprema é, pois, o equilíbrio dinâmico imanente à totalidade do cosmos, o qual é lícito considerar e só ele absolutamente eterno e imperecível. Para dizer a verdade, não se pode decidir pelos textos se, sim ou não, Heráclito afirmava essa conflagração periódica universal, a ekpyrosis, cuja paternidade os estoicos lhe atribuem; parece, todavia, que a guerra perderia com isso algo de sua realeza absoluta e que o esquema seja um pouco simples; não se percebe bem como o Fogo, reduzido, se se pode dizer, a si próprio, permaneceria, a despeito de sua originalidade significativa, um combate regulado entre opostos, já que ele participa, como as outras forças elementares, das grandes transmutações cósmicas. Do mesmo modo é muito pouco provável a concepção, demasiado fixista e talvez pitagórica por outro lado, de um “Grande Ano”, isto é, de um ciclo cósmico único e indefinidamente repetido.
Compreendamos, pois, que, no grande equilíbrio movediço em que nenhum ser se eterniza, a desordem é ordem, o acaso necessidade, a fealdade beleza, a injustiça justiça. Anaximandro se enganava ao dizer que os opostos em luta cometem alternadamente injustiças compensadoras ou que à injustiça sucede a reparação, pois todo o movimento, em sua unidade reguladora, é “a mais alta justiça”, ordem da desordem, razão da sem-razão, medida da desmedida, em suma, Unidade dinâmica do Cosmos, do “Fogo sempre vivo” que “julgará todas as coisas”. Tomar a mais aguda consciência possível desta lei parece ter sido a vocação de Heráclito e sua concepção da sabedoria. A alma tem uma afinidade natural com a “pilotagem de todas as coisas por todas as coisas”, porque ela é fogo, fogo celeste. Como tal originária da água, que é também, em sentido inverso, sua morte, ela guarda, se é vigilante e ativa, a secura do fogo e se une ao Logos universal que o torna capaz notadamente de dominar seu corpo, mas se ela se torna úmida, perde toda força e toda lucidez (como testemunha o estado de embriaguez); é a razão pela qual “as almas dos que morreram em combate são mais puras que as das pessoas mortas de doenças”. Não são todas as almas que morrem devoradas pela água: algumas, as melhores, sobrevivem desencarnadas e, depois, parece, reúnem-se ao fogo celeste, o “éter”. Mas não se deve imaginar aqui uma imortalidade pessoal, isto é, marcada pelas taras da pseudo-sabedoria “privada” e de resto o próprio fogo celeste não é um refúgio separado do grande movimento cósmico e de suas transmutações impiedosas. Não se deve colocar nenhuma finalidade antropocêntrica em relação com o estatuto particular da alma: se a alma humana tem como o fogo essa originalidade significativa que a aparenta ao Todo e lhe permite compreendê-lo agindo e agir compreendendo-o, a assimilação ao divino e o culto da Lei têm aqui um sentido completamente distinto que em Pitágoras. Afinal de contas, mais próximo dos milesianos, talvez influenciado pela religião depurada de Xenófanes, atento aos cultos agrários, cujos ritos e imagens não recusa de todo, Heráclito proclama uma verdade difícil, natureza, drama e tragédia, com a qual consente e coopera o pequeno número de sábios. (J. Bernhardt)
HERÁCLITO, em gr. Hêrakleitos, filósofo grego (Éfeso, Ásia Menor, c. 540 a.C. — t c. 480). Proveniente de uma importante família, é, na Antiguidade, o filósofo do fogo “criador do mundo e dos homens”. De seu tratado Da natureza restam-nos apenas fragmentos, escritos em prosa jônica. É o filósofo do devir, da mudança constante de todas as coisas (panta rei): o frio torna-se calor, o dia torna-se noite, o vivo morre etc. Essa profunda sensibilidade ao devir faz dele, na Antiguidade, o filósofo do mundo sensível; opõe-se aos “Eleatas” (Parmênides, Zenão), que sublinham a imutabilidade do ser, e à filosofia das “essências” de Platão. (Larousse)
Heráclito de Éfeso viveu entre os séculos VI e V a.C. Tinha um caráter desencontrado e um temperamento esquivo e desdenhoso. Não quis participar de modo algum da vida pública, como registra uma fonte antiga: “Solicitado pelos concidadãos a elaborar as leis da cidade, recusou-se, porque elas já haviam caído no arbítrio por sua má constituição.” Escreveu um livro intitulado Sobre a natureza, do qual chegaram até nós numerosos fragmentos, talvez constituído de uma série de aforismos e intencionalmente elaborado de modo obscuro e num estilo que recorda as sentenças oraculares, “para que dele se aproximassem somente aqueles que o podiam” e o vulgo se mantivesse distante. E o fez para evitar a depreciação e a desilusão daqueles que, lendo coisas aparentemente fáceis, acreditam estar entendendo aquilo que, no entanto, não entendem. Por isso, foi denominado “Heráclito, o Obscuro”.
Os filósofos de Mileto haviam notado o dinamismo universal das coisas, que nascem, crescem e perecem, bem como do mundo— aliás, dos mundos —, submetido ao mesmo processo. Além disso, haviam pensado o dinamismo como característica essencial do próprio “princípio” que gera, sustenta e reabsorve todas as coisas. Entretando, não haviam levado adequadamente tal aspecto da realidade ao nível temático. E é precisamente isso o que faz Heráclito. “Tudo se move”, “tudo escorre” (panta rhei), nada permanece imóvel e fixo, tudo muda e se transmuta, sem exceção. Em dois de seus mais famosos fragmentos podemos ler: “Não se pode descer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado, pois, por causa da impetuosidade e da velocidade da mudança, ela se dispersa e se reúne, vem e vai. (…) Nós descemos e não descemos pelo mesmo rio, nós próprios somos e não somos.”
É claro o sentido desses fragmentos: o rio é “aparentemente” sempre o mesmo, mas “na realidade” é constituído por águas sempre novas e diferentes, que sobrevêm e se dispersam. Por isso, não se pode descer duas vezes a mesma água do rio, precisamente porque ao se descer pela segunda vez já se trata de outra água que sobreveio. E também porque, nós próprios mudamos: no momento em que completamos uma imersão no rio, já nos tornamos diferentes de como éramos quando nos movemos para nele imergir. Dessa forma, Heráclito pode muito bem dizer que nós entramos e não entramos no mesmo rio. E pode dizer também que nós somos e não somos, porque, para ser aquilo que somos em um determinado momento, devemos não-ser-mais aquilo que éramos no momento anterior, do mesmo modo que, para continuarmos a ser, devemos continuamente não-ser-mais aquilo que somos em cada momento. E isso, segundo Heráclito, vale para toda realidade, sem exceção.
Sem dúvida, esse é o aspecto da doutrina de Heráclito que se tornou mais conhecido e que alguns de seus discípulos levaram a consequências extremas, como, por exemplo, Crátilo, que censurou Heráclito por não ter sido suficientemente rigoroso: com efeito, não apenas não podemos nos banhar duas vezes nó mesmo rio como também não podemos fazê-lo nem mesmo uma vez, dada a celeridade do fluxo (no momento em que começamos a imergir no rio já sobrevêm outra água e, por mais célere que possa ser a imersão, nós mesmos já somos outros antes que ela se complete, no sentido que já apontamos).
Mas, para Heráclito, essa é apenas a constatação de base, um ponto de partida para outras inferências, ainda mais profundas e argutas. O devir ao qual tudo está destinado caracteriza-se por uma contínua passagem de um contrário ao outro: as coisas frias esquentam, as quentes esfriam, as úmidas secam, as secas umedecem, o jovem envelhece,o vivo morre, mas daquilo que está morto renasce outra vida jovem e assim por diante. Há, portanto, uma guerra perpétua entre os contrários que se aproximam. Mas, como toda coisa só tem realidade precisamente no devir, a guerra (entre os opostos) revela-se essencial: “A guerra é mãe de todas as coisas e de todas as coisas é rainha.” Mas, note-se bem, trata-se de uma guerra que, ao mesmo tempo, é paz, num contraste que é harmonia ao mesmo tempo. O perene correr de todas as coisas e o devir universal revelam-se como harmonia de contrários, ou seja, como perene pacificação de beligerantes, uma permanente conciliação de contendentes (e vice-versa): “Aquilo que é oposição se concilia, das coisas diferentes nasce a mais bela harmonia e tudo se gera por meio de contrastes. (…) Eles (os ignorantes) não compreendem que aquilo que é diferente concorda consigo mesmo; é a harmonia dos contrários, como a harmonia do arco e da lira.” Somente em contenda entre si é que os contrários dão um sentido específico um ao outro: “A doença torna doce a saúde, a fome torna doce a saciedade e o cansaço torna doce o repouso. (…) Não se conheceria sequer o nome da justiça, se ela não fosse ofendida.”
E, na harmonia, os opostos coincidem: “O caminho de subida e o caminho de descida são um único e mesmo caminho. (…) No círculo, o fim e o princípio são comuns. (…) O vivo e o morto, o desperto e o adormecido, o jovem e o velho são a mesma coisa, porque, mudando, estas coisas são aquelas e, por seu turno, aqueles são estas ao mudar.” Assim, “tudo é um” e “do um deriva tudo”.
Essa “harmonia” e “unidade dos opostos” é o “princípio” e, portanto, Deus ou o divino: “Deus é dia-noite, é inverno-verão, é guerra e paz, é saciedade e fome.”
Hegel apreciava Heráclito a tal ponto que acolheu todas as suas propostas na sua Lógica, muito embora a harmonia dos opostos de Heráclito, evidentemente, esteja bem distante da dialética hegeliana, radicando-se na filosofia da physis, de modo que a identidade e a diversidade, como os estudiosos destacaram bem, são as “da substância primordial em todas as suas manifestações” (J. Burnet). Com efeito, tanto os fragmentos como a tradição indireta indicam claramente que Heráclito colocou o fogo como “princípio” fundamental, considerando todas as coisas como transformações do fogo: “Todas as coisas são uma troca do fogo e o fogo uma troca de todas as coisas, assim como as mercadorias são uma troca do ouro e o ouro troca de iodas as mercadorias. (…) Essa ordem, que é idêntica para todas as coisas, não foi feita por nenhum dos deuses nem dos homens, mas era sempre, é e será fogo eternamente vivo, que se acende segundo a medida e segundo a medida se apaga.” Também é evidente por que Heráclito adjudicou ao fogo a “natureza” de todas as coisas: o fogo expressa de modo exemplar as características de mudança contínua, contraste e harmonia. Com efeito, o fogo é continuamente móvel, é vida que vive da morte do combustível, é a contínua transformação do combustível em cinzas, fumaça e vapores, é perene “necessidade e saciedade”, como diz Heráclito de seu Deus.
Esse fogo é como um “raio que governa todas as coisas”. E aquilo que governa todas as coisas é “inteligência”, é “razão”, é “logos”, é “lei racional”. Assim, a ideia de inteligência, que nos filósofos de Mileto estava apenas implícita, é associada expressamente ao “princípio” de Heráclito. Um fragmento particularmente significativo sela a nova posição de Heráclito: “O Uno, único sábio, quer e não quer ser chamado Zeus.” Não quer ser chamado Zeus se por Zeus se entende o deus de formas humanas próprio dos gregos; quer ser chamado Zeus se por esse nome se entende o Deus ser supremo.
Em Heráclito já emerge uma série de elementos relativos à verdade e ao conhecimento. É preciso estar atento em relação aos sentidos, pois estes se detêm na aparência das coisas. E também é preciso se precaver quanto às opiniões dos homens, que se baseiam nas aparências. A Verdade consiste em captar, para além dos sentidos, a inteligência que governa todas as coisas. E Heráclito sente-se como que o profeta dessa inteligência, daí o caráter oracular de suas sentenças e o caráter hierático de seu discurso.
Deve-se ressaltar ainda uma outra ideia: apesar da colocação geral de seu pensamento, que o levava a interpretar a alma como fogo e, portanto, a interpretar a alma sábia como a mais seca, fazendo a insensatez coincidir com a umidade, Heráclito escreveu uma das mais belas sentenças sobre a alma que chegaram até nós: “Nunca poderás encontrar os limites da alma, por mais que percorras os seus caminhos, tão profundo é o seu logos.” Mesmo no âmbito de um horizonte “físico”, nessa afirmação Heráclito, com a ideia da dimensão infinita da alma, abre uma fresta em direção a algo ulterior e, portanto, não físico. Mas é só uma fresta, muito embora genial.
Parece que Heráclito acolheu algumas ideias dos órficos, afirmando o seguinte sobre os homens: “Imortais mortais, mortais imortais, vivendo a morte daqueles, morrendo a vida daqueles.” Essa afirmação parece expressar, na linguagem de Heráclito, a ideia órfica de que a vida do corpo é a mortificação da alma e a morte do corpo é a vida da alma. Ainda com os órficos, Heráclito acreditava em castigos e prêmios depois da morte: “Depois da morte, esperam pelos homens coisas que eles não esperam nem imaginam.” Entretanto, hoje não podemos mais estabelecer de que modo Heráclito procurava colocar essas crenças órficas em conexão com sua filosofia da physis. (Reale)
Heráclito de Éfeso, na Ásia Menor, é aproximadamente contemporâneo de Parmênides, embora filosoficamente deva ser considerado seu sucessor, pelo fato de mover-se dentro da dialética parmenídica do ser e do não ser. Foi chamado o obscuro, por seu estilo breve e alusivo, muitas vezes difícil de interpretar-se. Heráclito entende a realidade como algo que varia de um modo constante, que flui como um rio, que nunca é o mesmo que antes. É como um fogo — o elemento mais móvel e ativo — que continuamente se acende e se apaga. A alma melhor é a que se assemelha ao fogo, a mais seca; sua inferioridade consiste em fazer-se úmida como o barro ou converter-se em água.
Mas, por outro lado, o homem participa de um certo princípio chamado sophon — o “sábio” —, que é uno, sempre e separado de todas as coisas. Pelo nus, o homem tende ao sophón — cujos predicados coincidem com os do ente de Parmênides — e assim é philósophos, filósofo.
“Heráclito diz que a alma é uma centelha da substância estelar.” (Macróbio, Sonho de Cipião, I, 14, 19.)
“Para as almas, se converterem em água é a morte; para a água, tornar-se terra é a morte. Porém da terra se faz a água; da água, a alma.” (Fr. 36 de Diels.)
“Todas as coisas que vemos despertos são morte; as que vemos dormindo, sonhos (mas as que vemos mortos são vida).” (Fr. 21 de Diels. A frase entre parênteses é um complemento de Diels, que supõe uma escala psíquica: vida, sonho, morte, paralela à física: fogo, água, terra.)
“Procurei-me a mim mesmo.” (Fr. 101 de Diels.)
“Não encontrarás os limites da alma, ainda que avances por todos os caminhos; tão profunda é sua medida.” (Fr. 115 de Diels.)
“Ao morrerem os homens, aguardam-lhes coisas que não esperam nem imaginam.” (Fr. 27 de Diels.)
Os fragmentos de Heráclito foram publicados em uma excelente edição por Bywater. Pode-se consultar também Diels: Herakleitos von Ephesos: griechisch und deutsch. (Julián Marías)