Hesíodo — Teogonía
Segundo um dos estudiosos da obra de Hesíodo que sobre melhor investigá-la, Jaa Torrano (Teogonia, a origem dos deuses. Iluminuras, 1992), a leitura da Teogonia é a apreensão de um discurso sobre o nefando e sobre o inefável, i.e., um discurso sobre a experiência do sagrado, um discursos sobre o que não deve e não pode ser dito, quer por ser motivo do mais desgraçoso horror (o Nefando), quer por ser motivo e objeto da mais sublime vivência.
Para Torrano, a poesia de Hesíodo é arcaica, onde sua apreciação depende de nossa atenção ao sentido em que ela o é e às suas implicações. Arcaico entenda-se no sentido historiográfico da palavra (“Época Arcaica”), onde se aponta para uma anterioridade e antiguidade, onde o pensamento racional começava a prefigurar-se, mas também no sentido de arche, princípio inaugural, constituivo e dirigente de toda experiência da palavra poética. A poesia de Hesíodo é assim anterior ao florescimento das três invenções catastróficas que puseram um fim à Época Arcaica (séculos VIII-VII aC, segundo os estudiosos): a pólis, o alfabeto e a moeda.
A leitura da Teogonia ultrapassa e extrapola o interesse de mera erudição acadêmica, porque o mundo que este poema arcaico põe à luz, e no qual ele próprio vive, está vivo de um modo permanente e — enquanto formos homens — imortal, como afirma Torrano. “Um mundo mágico, mítico, arquetípico e divino, que beira o Espanto e o Horror, que permite a experiência do Sublime e do Terrível, e ao qual o nosso próprio mundo mental e a nossa própria vida esTão umbilicalmente ligados”. Para Hesíodo este mundo instaurado pela poesia é o próprio mundo.
Excertos
Os Deuses primordiais
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.
Do Caos Êrebo e Noite negra nasceram.
Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,
gerou-os fecundada unida a Êrebo em amor.
Terra primeiro pariu igual a si mesma
Céu constelado, para cercá-la toda ao redor
e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre.
Pariu altas Montanhas, belos abrigos das Deusas
ninfas que moram nas montanhas frondosas.
E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas
o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu
do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos
e Coiós e Crios e Hipérion e Jápeto
e Teia e Reia e Têmis e Memória
e Febe de áurea coroa e Tétis amorosa.
E após com ótimas armas Cronos de curvo pensar,
filho o mais terrível: detestou o florescente pai.
Pariu ainda os Ciclopes de soberbo coração:
Trovão, Relâmpago e Arges de violento ânimo
que a Zeus deram o trovão e forjaram o raio.
Eles no mais eram comparáveis aos Deuses,
único olho bem no meio repousava na fronte.
Ciclopes denominava-os o nome, porque neles
circular olho sozinho repousava na fronte.
Vigor, violência e engenho possuíam na ação.
Outros ainda da Terra e do Céu nasceram,
três filhos enormes, violentos, não nomeáveis.
Cotos, Briareu e Giges, assombrosos filhos.
Deles, eram cem braços que saltavam dos ombros,
improximáveis; cabeças de cada um cinquenta
brotavam dos ombros, sobre os grossos membros.
Vigor sem limite, poderoso na enorme forma.