A escola que Platão fundou nos jardins de Academo, perto de Atenas, constitui o primeiro instituto verdadeiramente organizado para acolher alunos. Biblioteca, sala de aulas, quartos, etc, conferem aos estudos filosóficos uma nova perspectiva. A escola trabalha segundo programas preestabelecidos e de todo o lado se acorre para assistir às aulas. Muitos alunos saídos da Academia irão espalhar, um pouco por toda a bacia mediterrânica, as ideias de Platão, e talvez, sobretudo, as suas ideias políticas. (Jean Brun)


A ACADEMIA NO SÉCULO IV. DEPOIS DE PLATÃO
Excertos da tradução de História da Filosofia, de Émile Bréhier, por Eduardo Sucupira FIlho

A Academia, após a atividade de Platão, teve sucessivamente, por escolarcas, a Espeusipo, sobrinho do mestre (348-339), Xenócrates (339-315), Pólemon (315-269). A história das doutrinas dos dois primeiros é pouco conhecida e limita-se a algumas alusões a Aristóteles. Parecem ter tido um desenvolvimento inteiramente liberto de certas sugestões do mestre. Não existe, naquele momento, nada da ortodoxia platônica, o que provoca viva censura por parte dos neoplatônicos aos sucessores diretos de Platão1. Contudo, o platonismo, minado pelas divergências da escola, vê-se arruinado pelo ataque dos novos dogmatismos em formação. Aristóteles, os estoicos e Epicuro coincidem em combatê-lo.

0 problema central parece ter sido, para os sucessores como para a velhice de Platão, o da formação dos mistos. No Filebo, como no Timeu, trata-se de explicar as diversas formas da realidade, mediante a intromissão de certa medida ou relação fixa em uma realidade primitivamente indefinida e sem fixidez. Tal modo de explicação, entretanto, não é senão um esquema vago que não exclui as divergências. De uma parte, com efeito, é válido, no que concerne à explicação dos números: o Uno, determinando o múltiplo ou díade indefinida do grande e do pequeno; o igual, determinando o desigual. Mas que dizer de outras realidades, tais como as magnitudes matemáticas ou o mundo? Espeusipo pensava que cada uma delas implicava um novo par de princípios diferente daquele de que provêm os números; como o número advém da união do uno e do múltiplo, as grandezas matemáticas nascem da mescla do indivisível com o espaço indefinido. As realidades de diversos graus, tendo cada uma seus princípios especiais, não mais dependerão umas das outras, e o conjunto das coisas, segundo a objeção de Aristóteles, será como uma péssima tragédia, feita de episódios2. Não obstante, ao introduzir, para cada grau, pares de princípios diferentes, Espeusipo devia insistir quanto à analogia ou similitude existente entre os pares sucessivos: por exemplo, conquanto a inteligência, princípio de união na alma do mundo, tenha natureza especial, absolutamente distinta do uno, princípio do mundo3, há, contudo, entre o uno e a inteligência, papéis análogos. Talvez fossem analogias desse gênero que Espeusipo buscava em seu tratado sobre os Semelhantes, cujos fragmentos concernem à classificação dos seres vivos.

Depreende-se, igualmente, da doutrina de Espeusipo, que os primeiros graus da realidade nada contêm de equiparável à riqueza e plenitude dos graus subsequentes. O Bem ou Perfeição não está no começo, mas no fim: da mesma forma, o germe vivo. não contém qualquer das perfeições que se encontram no animal adulto. É, também, um erro, segundo ele, que se assimile o Uno, que é princípio, ao Bem, que é posterior4.

Espeusipo sacrificou demasiado a dialética platônica, a saber: suprimiu a continuidade, que une por meio de uma cadeia dedutiva as formas da realidade com o princípio; nega a existência do Bem, como princípio, a dos números ideais, e, ainda, das próprias ideias. Ao considerar a série de mistos, números matemáticos, grandezas matemáticas, alma, serve-se do esquema platônico para construir cada um deles, mas ignorando-lhes a vinculação.

Em perfeito contraste com Espeusipo, Xenócrates parece pretender insistir sobre a unidade e continuidade da série de formas do ser. Ele identifica as ideias com os números ideais (ARISTÓTELES. Metafísica, Z. 1028 b 24.), e reencontra esses números na série de seres que deles dependem, nas linhas e superfícies ideais, que demonstra como indivisíveis; na alma, que define como um número que se move e, além disso, uma combinação do uno e do múltiplo; e, finalmente, no céu e em todas as coisas sensíveis5. Enquanto Espeusipo se recusa a assimilar o Uno ao Bem, dado que teria de identificar o seu contrário ao mal, que é múltiplo, Xenocrates não hesita ante essa conclusão. De onde se deduz que se todos os seres, salvo o Uno, são mistos do uno e do múltiplo, todos eles participam do mal. Sua teoria de linhas indivisíveis é a mais bem conhecida, graças ao trabalho apócrifo de Aristóteles Sobre as Linhas Indivisíveis6. A linha ideal (e o mesmo argumento aplica-se à superfície e ao corpo) deve ser indivisível, porque é anterior a todas as outras, e também sua unidade de medida.

Xenócrates tenta negar, em todo sentido, a aparente descontinuidade das coisas. Platão já houvera indicado, no Timeu, que todo corpo sensível devia compor-se de quatro elementos. Xenócrates toma por sua conta essa unidade substancial de diversas regiões do mundo, tão contrárias â doutrina que Aristóteles iria sustentar, e considera a solidez dos corpos na região terrestre como imitação da lua e do sol7.

As doutrinas de Espeusipo e Xenócrates são, pois, divergentes, mas os problemas que suscitam se igualam. Do mesmo modo, estão de acordo os dois discípulos, quando se trata de interpretar o Timeu8. Platão, ao descrever a gênese da alma e do mundo, não quis, segundo eles, descrever um devenir real. O mundo é eterno; apenas por comodidade Platão imagina que ele nasce, como o geômetra engendra, por construção, figuras que acredita eternas, somente para melhor separar os elementos componentes.

O método platônico fixa, portanto, em seus sucessores, uma doutrina. A livre fantasia dos mitos também vai acabar em dogmas. Essa transformação relaciona-se com a inclinação muito viva que o IV século, antes mesmo da época de Alexandre, representa para o Oriente. Dessa inclinação dão testemunho os títulos de alguns tratados de Demócrito, a respeito da escrita sagrada dos babilônios e egípcios, e sua admiração pela sabedoria dos orientais, dos quais pôde traduzir as sentenças morais9. O próprio Platão, ou quiçá, um de seus alunos mais chegados, Filipe Opunte, escreveu, em continuação às Leis, o Epínomis, que contém a primeira codificação, já nossa conhecida, da teologia astral dos gregos. Os astrônomos do século IV, separando o céu da terra, e diferençando, radicalmente, as coisas celestes dos meteoros, ao mostrarem a uniformidade do movimento dos planetas, compuseram um novo quadro dessa teologia provinda do Oriente (Epínomis, 986 e; 987 b). A ordem que reina nos céus é a prova da inteligência dos astros e da divindade, das almas que os animam (Epínomis, 982 b); o mundo divide-se em partes’ hierarquizadas, cada uma das quais possui seres vivos. Entre a terra, paragem da desordem, e o céu, mansão dos deuses visíveis (984 d), encontra-se o ar, onde vivem esses seres transparentes e invisíveis que são os demônios. Dotados de maravilhosa inteligência, conhecimento e memória, amam os bons e odeiam os maus, porque conhecem nosso pensamento; e não são impassíveis como os deuses, mas capazes de prazer e dor (984 d – 985 b). Xenocrates admitia uma hierarquia teológica, inteiramente análoga à do Epínomis no alto, os deuses supremos, que são a unidade e a díade; a unidade, que é macho, pai, rei do céu, Zeus, inteligência; a díade, divindade feminina, mãe dos deuses, alma do universo; mais abaixo, o céu e os astros, que são os deuses olímpicos; mais baixo ainda, os demônios invisíveis, sublunares, que penetram nos elementos10. É fácil avaliar a união decisiva que se estabelece então entre a imagem racional do cosmos e as velhas representações míticas e teológicas. Os demônios, como mediadores do enlace e unidade do mundo, ocupam, naturalmente, o ponto central nessa religião cósmica, da qual ver-se-á o extraordinário desenvolvimento no estoicismo e no neoplatonismo.

Mas Espeusipo e Xenócrates parecem ocupar-se, sobremodo, com a moral. Nove das trinta e duas obras de Espeusipo, cujos títulos foram conservados por Diógenes Laércio (IV,4), e vinte e nove das sessenta obras de Xenócrates (IV, 11) referem-se, expressamente, à moral. Seu sucessor, Pólemon, é mais conhecido como moralista, e seu contemporâneo, Crantor, escreveu pequeno tratado, Sobre o Luto, que Panécio, o estoico, dois séculos mais tarde, recomendava que se aprendesse de memória11. Dois traços caracterizam essa doutrina moral, entretanto mal conhecida; primeiro, certo naturalismo: há tendências naturais primitivas que influem sobre a integridade do corpo, a saúde, a atividade intelectual. A finalidade dos bens consiste, de acordo com Espeusipo, em atingir a perfeição nas coisas, de conformidade com a natureza; e, segundo Pólemon, a “viver de acordo com a natureza, isto é, usufruir os bens naturais primitivos, aliando-os à virtude12. O segundo traço, que deriva da República, é a prescrição que manda regulamentar e disciplinar os sentimentos, em vez de suprimi-los13. Essa metriopatia14) aconselhada por Crantor, na tristeza do luto, contrasta com a selvagem impassibilidade pregada pelas novas seitas de então e continuará sendo a tônica desses escritos de circunstância, Consolações, que vào se tornar numerosos nos séculos seguintes. Alguns temas (por exemplo, o argumento de que a morte não deve ser temida, que seja aniquilamento, ou que a alma passe depois para um lugar melhor), que se encontram em todos esses escritos, remontam â Apologia, de Platão (40 c), de onde transferir-se-ão, por intermédio de Crantor, a todos seus imitadores15. Sob esse aspecto, a Academia desempenha papel relevante no movimento de pregação moral, totalmente humano e independente de doutrinas, que veremos desenvolver-se no século III, e que, com variações, prevalecerá acima da divergência das seitas.


  1. NUMÊNIO (século II d.C), em EUSÉBIO, Preparação Evangélica, XIV, 5 

  2. ARISTÓTELES, Metafísica, Z. 2. 1028 b 21; cf. 1075 b 37 e 1900 b 1 3 

  3. DIELS, Doxographi graeci, p. 303; opõe, nisso, a Xenocrates. 

  4. ARISTÓTELES, Metafísica, A, 7, 1072 b 30; cf. 1075 a 36; 1092 a 22- 1091 a 29. 

  5. PLUTARCO, Criação da Alma segundo o Timeu, cap. II; CÍCERO, Sonho de Cipião, I, 14; Tusculanas. I, 20. 

  6. ARISTÓTELES, Metafísica, N, 1091 b 35. 

  7. PLUTARCO, A Face que se Vê da Lua, cap. XXIX. 

  8. PLUTARCO, Criação da Alma, cap. III. 

  9. DIÓGENES LAÉRCIO, Vidas, IX, 49; CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Estrômatos. I, 16, 69; cf. R. EISLER, Arch. für die Geschichte der Philosophie, 1917, p. 187 

  10. DIELS, Doxographi graeci, f. 304 

  11. CÍCERO, Primeiros Acadêmicos, II, § 135. 

  12. CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Estrômatos, 418 d e CÍCERO, Dos Fins, II. 11, § 33. 

  13. Citado por PLUTARCO, Consolação a Apolônio, III. 

  14. Moderação das paixões. (N. do T. 

  15. GERCKE, De Consolationibus; cf. CÍCERO, Tusculanas, I, 49. pp. 117-118.