Nada melhor do que um clássico texto de Jean-Pierre Vernant para introduzir esta seção.
A formação do pensamento positivo na Grécia arcaica1
O pensamento racional tem um registro civil: conhece-se a sua data e o seu lugar de nascimento. Foi no século VI antes da nossa era, nas cidades gregas da Ásia Menor, que surgiu uma forma de reflexão nova, inteiramente positiva, sobre a natureza. Burnet exprime a opinião corrente quando observa a este propósito: “Os filósofos jônios abriram o caminho que a ciência não fez depois senão seguir2”. O nascimento da filosofia, na Grécia, marcaram assim o começo do pensamento científico, — poder-se-ia dizer simplesmente: do pensamento. Na Escola de Mileto, o logos ter-se-ia pela primeira vez libertado do mito como as escaras caem dos olhos do cego. Mais do que uma mudança de atitude intelectual, do que uma mutação mental, tratar-se-ia de uma revelação decisiva e definitiva: a descoberta do espírito3. Seria por isso vão procurar no passado as origens do pensamento racional. O pensamento verdadeiro não poderia ter outra origem senão ele próprio. É exterior à história, que só pode, no desenvolvimento do espírito, dar a razão de obstáculos, de erros e de ilusões sucessivas. Tal é o sentido do “milagre” grego: através da filosofia dos jônios, reconhece-se a Razão intemporal encarnada no tempo. O aparecimento do logos introduziria portanto na história uma descontinuidade radical. Viajante sem bagagem, a filosofia viria ao mundo sem passado, sem pais, sem família; seria um começo absoluto.
Nesta perspectiva, o homem grego acha-se assim elevado acima de todos os outros povos, predestinado; nele se encarnou o logos. “Se inventou a filosofia, opinava ainda Burnet, deve-o às suas qualidades de inteligência excepcionais: o espírito de observação aliado ao poder do raciocínio”4. E, para além da filosofia grega, esta superioridade quase providencial transmite-se a todo o pensamento ocidental, surto do helenismo.
Publicado em Annales, Economies, Sociétés, Civilisations, 1957, pp. 183-206. (Também neste capítulo, aproveitamo-nos em muitos pontos do texto português publicado nas páginas 75-109 da obra acima citada: cf. p. 244, n.” 1, N.T.). ↩
Early Greek philosophy, Londres, 1920, p.v. O obra foi traduzida em francês com o título: L’Aurore de la philosophie grecque. ↩
Encontra-se ainda esta interpretação em Bruno Snell, cuja perspectiva é, no entanto, histórica: Die Entdeckung des Geistes. Studien zur Entstehung des europäischen Denken bei den Griechen, Hamburgo, 1955; trad. inglesa com o título: The discovery of the Mind, Oxford, 1953. ↩
Op. cit., pág. 10. Como escreveu Clemence Ramnoux, a física jônia, segundo Burnet, salva a Europa do espírito religioso do Oriente: é a Maratona da vida espiritual (“Les interprétations modernes d’Anaximandre”, Revue de Métaphysique et de Morale, n.° 3, 1954, pp. 232-252. ↩