mnéme (he) / mneme: memória.
É a faculdade de aprender (Aristóteles, Met., A, 1). Sinônimo: mnemosyne. (Gobry)
Mas a palavra cantada é inseparável da memória: na tradição hesiódica, as Musas são filhas de Mnemosyne; em Kios, elas levam o nome de “remembranças” (mneiai); são elas também que fazem o poeta “lembrar-se”. Qual é a significação da memória? Quais são suas relações com a palavra cantada? Em primeiro lugar, o estatuto religioso da memória, seu culto nos meios dos aedos e sua importância no pensamento poético não podem ser compreendidos se se desprezar o fato de que, do século XII ao século IX, a civilização grega fundava-se não sobre a escrita, mas sobre as tradições orais. “Que memória não era necessária naqueles tempos?! Quantas indicações eram dadas sobre os meios de identificar os lugares, sobre os momentos propícios aos empreendimentos, sobre os sacrifícios que haveriam de ser feitos aos deuses. . . sobre os monumentos dos heróis, cuja localização era secreta e muito difícil de ser encontrada em regiões tão distantes da Grécia.” Uma civilização oral exige um desenvolvimento da memória, ela necessita da execução de técnicas de memória muito precisas. A poesia oral, da qual resultam a Ilíada e a Odisseia, não pode ser compreendida sem se postular uma verdadeira “mnemotécnica”. As pesquisas de Milmann Parry e seus epígonos esclarecem bastante os procedimentos de composição dos poetas através da análise da técnica formular: os aedos, com efeito, criavam oralmente e de maneira direta, “não através de palavras, mas através de fórmulas, por grupos de palavras construídas de antemão e prontas para se engatar no hexâmetro dactílico”. Sob a inspiração poética, suspeita-se um lento adestramento da memória. Os poemas homéricos oferecem, por outro lado, exemplos destes exercícios “mnemotécnicos”, que deviam assegurar aos jovens aedos o domínio da difícil técnica poética: são estas as passagens conhecidas sob o nome de “catálogos”. Há um catálogo dos melhores guerreiros aqueus, um catálogo dos melhores cavalos. O catálogo dos exércitos grego e troiano, por exemplo, ocupa a metade do segundo canto da Ilíada, ou seja, quatrocentos versos que representam para o recitante uma autêntica proeza.
Mas a memória dos poetas é uma função psicológica orientada como a nossa? As pesquisas de J.-P. Vernant permitem afirmar que a memória divinizada dos gregos não responde, de modo algum, aos mesmos fins que a nossa; ela não visa, em absoluto, reconstruir o passado segundo uma perspectiva temporal. A memória sacralizada é, em primeiro lugar, um privilégio de alguns grupos de homens organizados em confrarias: assim sendo, ela se diferencia radicalmente do poder de se recordar que possuem os outros indivíduos. Nesses meios de poetas inspirados, a Memória é uma onisciência de caráter adivinhatório; define-se como o saber mântico, pela fórmula: “o que é, o que será, o que foi”. Através de sua memória, o poeta tem acesso direto, mediante uma visão pessoal, aos acontecimentos que evoca; tem o privilégio de entrar em contato com o outro mundo. Sua memória permite-lhe “decifrar o invisível”. A memória não é somente o suporte material da palavra cantada, a função psicológica que sustenta a técnica formular; é também, e sobretudo, a potência religiosa que confere ao verbo poético seu estatuto de palavra mágico-religiosa. Com efeito, a palavra cantada, pronunciada por um poeta dotado de um dom de vidência, é uma palavra eficaz; ela institui, por virtude própria, um mundo simbólico-religioso que é o próprio real. Qual é, a partir de então, a função do poeta? Com que fins utiliza seu dom de vidência? Quais são os registros da palavra cantada, inserida na memória? Qual é, em meio a esses registros, o lugar e o valor da Aletheia? (Marcel Detienne, OS MESTRES DA VERDADE NA GRÉCIA ARCAICA)