Natureza e Ontologia do Espaço

Tendo assim demonstrado, à sua própria satisfação, a legitimidade e validade perfeitas do conceito de espaço, enquanto distinto da matéria, e refutado sua fusão no conceito cartesiano de “extensão”, Henry More passa para a determinação da natureza e do estatuto ontológico da entidade correspondente.

Espaço” ou “locus interno” é alguma coisa extensa. Ora, a extensão, como os cartesianos têm toda razão em afirmar, não pode ser uma extensão de nada: a distância entre dois corpos é uma coisa real, ou, para dizer o mínimo, uma relação que implica um fundamentum reale. Os cartesianos, por outro lado, erram em acreditar que o espaço vazio seja nada. É alguma coisa, e alguma coisa que existe, no pleno sentindo do verbo. Mais uma vez, não é uma ficção, ou um produto da imaginação, mas uma entidade perfeitamente real. Os antigos atomistas tinham razão ao afirmar sua realidade e em qualificá-la de natureza inteligível.

A realidade do espaço pode ser também demonstrada de maneira um tanto diferente. E certo”

. . . que um atributo real de um sujeito real qualquer não pode ser encontrado em nenhuma parte, senão onde algum sujeito real o sustém. Mas a extensão é um atributo real de um sujeito real (ou seja, a matéria), o qual [atributo], contudo, é encontrado alhures [ou seja, onde não há matéria] e isto independentemente de nossa imaginação. Com efeito, somos incapazes de não conceber que uma certa extensão imóvel, que tudo penetra, até o infinito, tenha sempre existido e existirá para toda eternidade (quer pensemos nisso, quer não pensemos), e [que ela seja], não obstante, realmente diferente da matéria.

Por conseguinte é necessário que, visto ser ela um atributo real, algum sujeito real sustenha essa extensão. Esta argumentação é de tal modo sólida que nenhuma poderia ser mais forte. Pois se ela não for válida, não poderemos concluir com qualquer certeza a existência na natureza de qualquer sujeito real, seja qual for. Com efeito, nesse caso os atributos reais poderiam estar presentes sem que houvesse qualquer sujeito real ou substância real que os sustivessem.

More tem razão. Com base na ontologia tradicional — e ninguém no século XVII é tão temerário ou leviano para rejeitá-la ou substituí-la por uma nova (com a possível exceção de Gassendi, que afirma que o espaço e o tempo não são nem substâncias nem atributos, mas simplesmente espaço e tempo) — seu raciocínio é totalmente irrefutável. Atributos implicam substâncias. Os atributos não vagueiam sós, livres e soltos pelo mundo. Não podem existir sem substrato, como o sorriso do gato de Cheshire, pois isso significaria serem atributos de nada. Mesmo aqueles que, como Descartes, modificam a ontologia tradicional, afirmando que os atributos nos revelam a própria natureza, ou essência, de suas substâncias — e Henry More se apega à velha opinião de que isso não acontece —, mantêm a relação fundamental: nenhum atributo real sem substância real. Henry More, portanto, está inteiramente certo também ao observar que sua argumentação funda-se sobre alicerces do mesmo tipo da argumentação cartesiana e

. . . este é exatamente o mesmo meio de demonstração que Descartes usa para provar que o Espaço é uma substância, ainda que em seu caso ela se torne falsa, ao concluir ele que [a substância] é corpórea.

Além de tudo, a maneira como More infere da extensão uma substância subjacente e que a sustém é exatamente paralela ao raciocínio de Descartes,

… se bem que ele [Descabertes] persegue um outro objetivo, diferente do meu. Com efeito, por meio desse argumento ele procura provar que o Espaço chamado vazio é exatamente a mesma substância corpórea que é chamada de matéria. Eu, ao contrário, como demonstrei claramente que o Espaço ou lugar (locus) interno é realmente distinto da matéria, concluo que ele é um certo sujeito ou espírito incorpóreo, tal como os pitagóricos no passado afirmavam ser. E assim, através da mesma porta pela qual os cartesianos desejam expulsar Deus do mundo, eu, pelo contrário (e estou confiante em que terei êxito), luto e me esforço para trazê-Lo de volta.

Resumindo: Descartes estava certo ao procurar substância para sustentar extensão. Estava errado ao encontrá-la na matéria. O infinito, entidade extensa que tudo abrange e tudo penetra, é com efeito uma substância. Mas não é matéria. É Espírito; não um espírito, mas o Espírito, isto é, Deus.

O espaço, com efeito, não só é real, como é alguma coisa de divino. E para nos convencermos de seu caráter divino, basta-nos considerar seus atributos. Henry More passa portanto para a

. . . Enumeração de cerca de vinte títulos que os metafísicos atribuem a Deus e que convêm à extensão imóvel ou lugar (locus) interior.

Quando tivermos enumerados aqueles nomes e títulos que lhe convêm, essa extensão infinita parecerá ser não só uma coisa real( como acabamos de destacar), mas até uma coisa Divina (que de modo tão certo é encontrada na natureza); isso nos dará maior certeza de que [o espaço] não pode ser nada, uma vez que aquilo a que convêm tantos e tão magníficos atributos não pode ser nada. São os seguintes, que os metafísicos atribuem particularmente ao Ser Primeiro, a saber: Uno, Simples, Imóvel, Eterno, Completo .Independente, Existente em Si Mesmo, Subsistente por Si Mesmo, Incorruptível, Necessário, Imenso, lncriado, Incircunscrito, Incompreensível, Onipresente, Incorpóreo, Todo-penetrante, Todo-abrangente, Ser por Essência, Ser Atual, Ato Puro.

Não há menos de vinte títulos pelos quais se designa habitualmente o Numen Divini, e que convêm perfeitamente ao lugar (locus) interno infinito, cuja existência na natureza já demonstramos; e omito ainda que o próprio Numen Divino é chamado pelos Cabalistas de MAKOM, isto é, Lugar (locus). Seria deveras assombroso e uma espécie de prodígio que a coisa da qual tanto se pode dizer, fosse, demonstradamente, um simples nada.

Com efeito, seria extremamente assombroso que uma entidade eterna, não criada e que existe em si mesmo e por si mesmo se reduzisse finalmente a um puro nada. Essa impressão só poderia ser fortalecida pela análise dos “títulos” enumerados por More, que passa a examiná-los um a um:

Que essa extensão infinita; distinta da matéria, é Una, Simples e Imóvel.

Mas examinemos cada um dos títulos e observemos sua congruência. Essa Extensão Infinita, distinta da matéria, é com razão chamada Una, não só porque é alguma coisa homogênea e em toda parte semelhante a si mesma, mas porque é em tamanho grau una que é absolutamente impossível que dela houvesse muitas, ou que se tornasse muitas, uma vez que não possui partes físicas a partir das quais pudesse ser multiplicada ou nas quais, verdadeiramente e fisicamente, pudesse ser dividida, ou nas quais pudesse ser comprimida. Assim é, com efeito, o locus interno, ou, se preferirdes, o mais interior. Disso se segue que é chamada com justiça de Simples, visto que, como disse, não possui partes físicas. Quanto àquilo que se relaciona com essas diversidades, das quais podemos fazer uma distribuição lógica, não há absolutamente coisa alguma que seja tão simples que elas não pudessem ser encontradas ali.

Mas da Simplicidade deduz-se facilmente sua Imobilidade. Pois nenhuma Extensão Infinita, que não é nem co-aumentada a partir de partes, nem de nenhum modo condensada ou comprimida, pode ser movida, seja parte por parte, seja no todo ao mesmo tempo, porquanto é infinita, nem [pode ser] contraída num espaço menor, uma vez que nunca é condensada, nem pode abandonar seu lugar, visto que esse Infinito é o lugar mais interior de todas as coisas, dentro ou fora do qual nada existe. E do simples fato de alguma coisa ser concebida como sendo movida, entende-se logo que não pode ser parte dessa Extensão Infinita da qual estamos falando. Por conseguinte, é necessário que seja imóvel, Atributo do Ser Primeiro que Aristóteles celebra como o mais exaltado.

O espaço absoluto é infinito, imóvel, homogêneo, indivisível e único. Trata-se de propriedades importantíssimas, que Spinoza e Malebranche descobriram quase ao mesmo tempo que More, e que lhes possibilitaram colocar a extensão — uma extensão inteligível, diferente daquela que é dada a nossa imaginação e nossos sentidos — em seus respectivos Deuses. São essas propriedades que Kant haveria de redescobrir cem anos depois. Contudo, tal como Descartes, Kant não inclui entre elas a indivisibilidade, o que impediu de relacionar o espaço a Deus e o obrigou a colocá-lo em nós mesmos.

Mas não nos afastemos de nosso tema. Voltemos a More e ao espaço de More.

É também justamente dito Eterno, pois não podemos de modo algum conceber que essa [entidade] Una, Imóvel e Simples não tenha existido sempre e que não existirá sempre. Mas não é esse o caso para [a extensão] móvel, ou para a que possui partes físicas e que pode ser condensado ou comprimido em partes. Portanto, a Eternidade, pelo menos a necessária, implica também a simplicidade perfeita da entidade [eterna].

Percebemos num átimo: o espaço é eterno, portanto incriado. Mas as coisas que estão no espaço de maneira alguma participam dessas propriedades. Muito pelo contrário: são temporais e mutáveis, e são criadas por Deus no espaço eterno e num certo momento do tempo eterno.

O espaço não é apenas eterno, simples e uno. É também

. . . Completo, porque não se combina com nenhum outro ser a fim de formar uma entidade [consigo]; de outra forma, transportaria consigo ao mesmo tempo [aquele ser], o que não é o caso do locus eterno.

Com efeito, ele é não só Eterno como também Independente, não só de nossa Imaginação, como já demonstramos, mas também de qualquer coisa, e não está ligado a qualquer outra coisa, nem sustida por nenhuma, mas recebe e sustém todas [as coisas] em seu lugar.

Deve ser concebido como Existente em Si Mesmo porque é totalmente independente de qualquer outra [entidade]. Ora, do fato de não depender de coisa alguma há um sinal bastante claro, ou seja, que enquanto podemos conceber todas as outras coisas como destrutíveis na realidade, essa Extensão infinita imóvel não pode ser concebida ou imaginada como destrutível.

Com efeito, não podemos “desimaginar” o espaço ou afugentá-lo do pensamento. Podemos imaginar ou pensar que qualquer objeto desapareça do espaço; não podemos imaginar, o desaparecimento do próprio espaço. O espaço é o pressuposto necessário de nossa cogitação sobre a existência ou inexistência de qualquer coisa.

Mas que ele é Imenso e Incircunscrito é patente, pois onde quer que lhe desejemos impor, pela imaginação, um limite, não podemos deixar de conceber uma extensão ulterior que exceda esses limites, até o infinito.

Disso percebemos ser ele incompreensível. Com efeito, como poderia uma mente finita compreender aquilo que não está compreendido dentro de quaisquer limites?

Henry More poderia nos ter dito também que estava utilizando, ainda que, naturalmente, para um fim diferente, os célebre argumentos mediante os quais Descartes procurou provar a indefinidade da extensão material. No entanto, ele pode ter julgado que não só o objetivo do argumento, como também seu próprio significado, opunham-no ao de Descartes. Realmente, o progressus in infinitum era usado por Henry More não para negar, e sim para afirmar a infinitude absoluta da sua extensão, que

. . . é também incriada, pois é a primeira de todas, pois existe por si mesma (a se) e é independente de tudo mais. E Onipresente porque é imensa ou infinita. Mas Incorpórea porque penetra a matéria, embora seja uma substância, isto é, um ser subsistente em si próprio.

Ademais, tudo penetra porque é uma [entidade] incorpórea, imensa, e compreende todas as [coisas] singulares em sua imensidade.

É mesmo, não sem razão, chamada Ser por essência em oposição a ser por participação, porque como é um Ser por si mesmo e Independente, não recebe sua essência de nenhuma outra coisa.

Enfim, é justamente dito um Ser em ato porque não pode ser concebida como existente fora de suas causas.

A lista de “atributos” comuns a Deus e ao espaço, enumerados por More, é bastante impressionante, e somos obrigados a admitir que convêm perfeitamente. Afinal, isso não surpreende: todos eles são os atributos ontológicos formais do absoluto. De resto, temos de reconhecer a energia intelectual de Henry More, que lhe permitiu não recuar ante as conclusões de suas premissas, bem como a coragem com que ele anunciou ao mundo a espacialidade de Deus e a divindade do espaço.

Quanto às suas conclusões, ele não poderia evitá-las. Espaço infinito é espaço absoluto; mais até, é um Absoluto, Mas não podem existir dois (ou muitos) seres absolutos e necessários. Assim, como More não podia aceitar a solução cartesiana da indefinidade da extensão e teve de torná-la infinita, foi eo ipso colocado ante um dilema. Podia considerar o mundo material como infinito, a se e per ser, nem requerendo nem admitindo a ação criativa de Deus; isto é, no fim das contas, não tendo nenhuma necessidade da existência de Deus, e até excluindo essa existência.

Ou ele poderia — e foi exatamente isso o que fez — separar matéria e espaço, e elevar este à dignidade de um atributo de Deus e de órgão no qual e por meio do qual Deus cria e mantém Seu mundo, um mundo finito, limitado tanto no espaço como no tempo, uma vez que uma criatura infinita é um conceito inteiramente contraditório. Isto é uma coisa que Henry More admite não ter reconhecido na juventude, quando, tomado por furor poético, cantou em seu Democritus Platonissans um hino à infinitude dos mundos.

Provar a limitação do mundo no tempo não é difícil; segundo More, será suficiente considerar que nada pode pertencer ao passado se não se tornou “passado” depois de ter sido “presente”, a que nada poderia jamais ser “presente” se, antes disso, não tivesse pertencido ao futuro. Daí segue-se que todos os acontecimentos passados pertenceram, em algum momento, ao futuro, isto é, houve um tempo em que todos eles ainda não eram “presentes”, ainda não existiam, um tempo quando tudo ainda estava no futuro e quando nada era real.

Muito mais difícil é provar a limitação da extensão espacial do mundo (material). A maioria dos argumentos alegados em favor da finitude é fraca. Entretanto, pode-se demonstrar que o mundo material deve, ou pelo menos pode, ter limites e portanto não é realmente infinito.

E, para nada dissimular, este parece ser o melhor argumento para demonstrar que a Matéria do Mundo não pode ser absolutamente infinita, mas somente indefinida, como disse Descartes algures, e reservar o nome de infinito somente para Deus. O que deve ser afirmado tanto para a Duração quanto para a Amplitude de Deus. Com efeito, os dois são absolutamente infinitos; os do Mundo, porém, são apenas indefinidos. . . isto é, na verdade, finitos. Desse modo Deus é devidamente, isto é, infinitamente, elevado sobre o Universo, e será compreendido como sendo não só por uma eternidade infinita mais velho do que o Mundo, como também por espaços imensos maior e mais amplo do que ele.

Fecha-se o círculo. A concepção que Henry More atribuiu a Descartes — ainda que falsamente — e que tão acremente criticou na juventude, demonstrou sua força. Um mundo indeterminadamente vasto mas finito, lançado num espaço infinito é a única concepção, More percebe agora, que os permite manter a distinção entre o mundo contingente criado e o Deus eterno existente a se e per se.

Por uma estranha ironia da história, o kenon dos antigos atomistas ateus tornou-se para Henry More a própria extensão de Deus, a própria condição de Sua ação no mundo.