(Excertos de Jean Brun, “Pré-Socráticos”)
Os Pitagóricos são célebres por haverem feito sua a divisa «tudo é número». Certos historiadores da filosofia e das ciências quiseram ver aí o início de uma visão científica e moderna do mundo, para a qual compreender é medir, considerando-se científico num conhecimento apenas o que nele há de matemático. É assim que L. Brunschvicg (Le rôle du Pythagorisme dans l’évolution des idées, Paris, 1937) felicita Pitágoras por essa intuição genial, mas deplora encontrar sempre nas suas especulações numerosas superstições relacionadas com os números, constituindo, ao lado da verdadeira aritmética, uma aritmologia que se compraz em considerações nebulosas e mitológicas.
É talvez um contrassenso pretender fazer de Pitágoras o antepassado ainda hesitante desse reino da quantidade que caracteriza os tempos modernos. 0 pitagorismo é, com efeito, subtendido por uma visão do mundo que implica uma concepção do número muito diferente da atual. Consideramos hoje o número como uma coleção de unidades; é assim que 3 resulta para nós da adição de 1 a 1 e ainda a 1. O número nasce, pois, da repetição dia unidade. Dessa concepção nasceram as filosofias da dedução e do desenvolvimento que conduziram às técnicas da potência.
Para os Pitagóricos, ao contrário, o número nasceu da divisão da unidade. «0 Uno, desdobrando-se, duplica-se, um produziu dois», como diz Aristóteles (Metaf., XIV, 3). Falando com propriedade, não há, então, plural da unidade; ou, antes, importa distinguir o Uno (to hen), o Número dos números, e a mônada, o número das coisas numeradas. Tal concepção do mundo conduz a uma filosofia do envolvimento, em que o número faz parte da unidade, por mais longe que esteja a unidade que faça parte do número.
Por isso, enquanto hoje esquematizaríamos de boa vontade qualquer número por uma sucessão de segmentos,
[img_assist|nid=2849|title=Segmentos|desc=|link=none|align=center|width=290|height=31]os Pitagóricos representariam de melhor vontade o número pela divisão do círculo:
[img_assist|nid=2850|title=Círculo|desc=|link=none|align=center|width=225|height=108]Compreende-se imediatamente que, para os Pitagóricos, o número tenha sido não apenas uma coleção mas também uma figura: 3 é o triângulo, 4, o quadrado, 5, o pentágono, 6, o hexágono, etc. Por essa razão representam os números por números-pontos
[img_assist|nid=2851|title=Pontos|desc=|link=none|align=center|width=404|height=65]Esta representação gráfica permite demonstrar de um só relance que a soma dos números ímpares é igual à sucessão dos números quadrados. Com efeito1,
[img_assist|nid=2852|title=Números ímpares e pares|desc=|link=none|align=center|width=423|height=148]É igualmente por processo gráfico que se demonstrava
[img_assist|nid=2853|title=Teorema de Pitágoras I|desc=|link=none|align=center|width=515|height=111]e mesmo o célebre teorema de Pitágoras:
[img_assist|nid=2854|title=Teorema de Pitágoras II|desc=|link=none|align=center|width=517|height=243]O número pitagórico, porque é essencialmente uma figura, possui uma individualidade, mesmo uma personalidade, que exprime as relações da parte e do todo no interior de uma harmonia. Assim, o princípio primeiro é o Uno, que encerra em si todos os números e se eleva acima de todos os contrários, é o número dos números. Quanto aos números propriamente ditos, são o próprio ser (teen ousian kai to ou), o ser em todas as categorias do ser. São o elemento material (os hylen), o elemento formal (os pathe te kai exeis) as causas (aitious); são os princípios que se encontram em todos os seres da natureza, seres materiais e dotados de movimento. Os números são simultaneamente a substância, a matéria e o princípio do movimento destes seres. Os princípios estão nas coisas (enyparchei) e, sendo simultaneamente forma e matéria, é claro que são delas inseparáveis. Mas, ainda que inseparáveis, os números parecem distintos das coisas: porque são anteriores a todos os seres da natureza. São, então, simultaneamente transcendentes e imanentes2. Por conseguinte, os números são coisas, porque as coisas são números; é, então, indiferente estudar uns ou outras.
Se se pretende compreender completamente o sentido e alcance da célebre definição legada por Tião de Esmirna, «segundo a doutrina dos Pitagóricos, os números são, por assim dizer, o princípio (arche), a fonte (pege) e a raiz (rixa) de todas as coisas»3, convém não esquecer que o número, enquanto expressão da relação da parte e do Uno-Todo, traduz um intervalo muito diferente de um simples intervalo métrico, mas que constitui um verdadeiro intervalo ontológico, que deve conduzir à reflexão sobre a noção de harmonia. Relação do indivíduo ao ser, do Múltiplo ao Uno-Todo, o número pitagórico não é simples quantidade: é intervalo harmônico. Esta última noção é a pedra angular de toda a ciência, sobretudo da ‘ciência do cosmo.
Cf. TIÃO DE ESMIRNA, Exposition des connaissances mathématiques utiles pour la connaissance de Platon, trad. J. Dupuis, Paris, 1892; reed. Bruxelas, 1966, p. 27. ↩
Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, 1, § 5. ↩
TIÃO de ESMIRNA, Exposition des connaissances mathématiques utiles pour la connaissance de Platon, trad. J. Dupuis, Paris, 1892; reed. Brux. 1966, p. 27. ↩