Platão e Aristóteles falham na questão do ser [Boutot, 1987]

Vale a pena notar, no final desta análise da questão do ser em Platão, uma evolução na interpretação heideggeriana do pensamento platônico. Esta evolução, a que teremos de voltar, é, de fato, particularmente notória em relação à posição do problema do ser em Platão. Mas é também visível noutros lugares, e em particular através da interpretação da ideia platônica do Bem, da ἰδέα τοῦ ἀγαθοῦ, cuja transcendência é assimilada inicialmente por Heidegger à do Dasein, depois àquela, metafísica, da essência do ser sobre o próprio ser. Esta evolução, que na realidade não é mais do que o retrocesso da evolução do próprio pensamento de Heidegger, não diz obviamente respeito apenas à leitura do platonismo, mas afeta a interpretação da história da filosofia no seu conjunto. Um exemplo privilegiado neste domínio é a evolução da leitura heideggeriana da filosofia kantiana que se pode observar quando passamos do primeiro livro sobre Kant: Kant und das Problem der Metaphysik (GA3) que data de 1929, para o opúsculo Kants These über das Sein (GA9) publicado mais tarde (1962). Enquanto na primeira obra Kant é apresentado como uma espécie de precursor do próprio Heidegger, na medida em que teria pressentido algo da temporalidade intrínseca do Dasein, na segunda, pelo contrário, ele é deliberadamente rejeitado na tradição metafísica. Digamos simplesmente que a evolução de Heidegger vai no sentido da afirmação, pelo próprio Heidegger, da distância, mesmo do abismo, que separa o seu próprio pensamento do pensamento de todos aqueles que o precederam. É como se Heidegger se libertasse cada vez mais claramente da tradição metafísica em que acabou por englobar todos os seus antecessores desde Platão.

É assim que, sobre o problema do ser, Platão aparece a Heidegger, na altura de Sein und Zeit, como uma espécie de precursor. Não é por acaso que Sein und Zeit abre com uma citação do Sofista. Neste Diálogo, Platão coloca a questão (40) do sentido do ser, e nesta obra Heidegger não se propõe outra coisa senão colocar de novo esta questão, ou, como ele próprio diz, “repeti-la (wiederholen)”. A repetição de um problema fundamental, no sentido em que Heidegger o entende, não é a simples repetição do que já foi dito, mas, diz-nos ele, “a atualização das possibilidades que (esse problema) esconde. O desenvolvimento destas tem o efeito de transformar (verwandeln) o problema em consideração e, ao mesmo tempo, preservar (bewahren) o seu conteúdo autêntico” (GA3:198). Em Sein und Zeit, Heidegger “repete”, ou seja, transforma, preservando, o problema colocado por Platão no Sofista. De certa forma, ele encontra neste Diálogo as premissas do seu próprio questionamento na direção do ser, e também a prova, se alguma fosse necessária, da autenticidade e necessidade deste modo de questionamento (GA2:3). No entanto, enquanto se liga a Platão desta forma, Heidegger, de acordo com a essência “destrutiva” de toda a verdadeira repetição, denuncia imediatamente as insuficiências da posição platônica sobre o problema do ser. Platão falhou e Aristóteles também: Platão não conseguiu, nem Aristóteles, “elaborar (ausarbeiten)” concretamente a questão do ser. A gigantomaquia de Platão sobre o ser, ecoada no Sofista, “só conquista como tal”, diz-nos Heidegger, “a questão do ser, mas sem a elaborar concretamente como o problema da possibilidade intrínseca de compreender o ser” (GA3:232). Platão colocou explicitamente a questão do ser, e esse é o seu grande mérito. Mas não viu que essa questão conduzia necessariamente a uma interrogação prévia do ser para o qual o ser em geral tem sentido, isto é, daquilo a que Heidegger chama Dasein, ser-aí, ou do homem na medida em que ele é o lugar onde se realiza toda a compreensão do ser.

No entanto, este ponto precisa de ser clarificado. Pois a filosofia em geral, e Platão não é exceção, sempre concedeu, segundo Heidegger, mas sem o saber, um lugar central ao Dasein, ao ser-aí na sua procura do ser. De fato, o teatro onde se desenrola, desde Parménides, a γιγαντομαχία Περὶ τοῦ ὄντος, a gigantomaquia relativa ao ser, não é, no fundo, senão o próprio Dasein. “O esclarecimento do ser“, diz Heidegger, ‘realiza-se em Parménides no caminho de uma meditação sobre o ’pensar”, νοεῖν, sobre o saber do ser (εἶναι), o saber dele. Em Platão, o desvelamento das “Ideias”, que são as determinações do ser, é regulado pelo diálogo da alma consigo mesma (ψυχή-λόγος). Conduzido pela questão da οὐσία, Aristóteles conquista as categorias ao considerar a atividade declarativa e predicativa da razão (λόγος-νοῦς). Em busca da substantia, Descartes funda explicitamente a “primeira filosofia (prima philosophia)” na res cogitans, no animus. A problemática transcendental de Kant, isto é, ontológica, orientada para o ser (a questão da possibilidade da experiência), desloca-se para a dimensão da consciência, da subjetividade livre (da espontaneidade do Ego). Para Hegel, a substância é determinada a partir do sujeito. A batalha pelo ser é travada no terreno do pensamento, da pregação, da alma, da subjetividade… O ser do homem (das menschlichen Dasein) ocupa o centro! (GA26:19). É como se os filósofos, ao levarem a luta pelo ser para o terreno do pensamento, da alma ou da subjetividade, tivessem reconhecido implicitamente que o Dasein deveria ocupar um lugar central na elaboração do problema do ser. De certa forma, eles esboçaram a abordagem que Heidegger adotaria em Sein und Zeit. Mas, não tendo visto o fenômeno do Dasein, não puderam (42) elaborar a questão do ser enquanto tal, ou, consequentemente, determinar o horizonte a partir do qual o Dasein compreende o ser em geral, o seu próprio ser e o ser de todas as coisas.

Se, em Sein und Zeit, Heidegger se liga expressamente a Platão, encontrando nele o esboço da sua própria interrogação na direção do ser, nos seus escritos posteriores, por outro lado, e em particular em Platons Lehre von der Wahrheit (GA9), ele distancia-se do pensamento platônico. Platão vê-se assim rejeitado na tradição metafísica. A questão fundamental platônico-aristotélica τί τὸ ὄν, o que é o ser? torna-se a questão orientadora da metafísica e, deste ponto de vista, já não tem nada a ver com a meditação de Heidegger sobre o ser. Já não se trata de encontrar em Platão os lineamentos de um autêntico pensamento do ser, mas, ao descartar a metafísica de que Platão é o iniciador, de denunciar o pensamento platônico, e com ele toda a metafísica, como um pensamento que esquece o ser e a sua verdade. Se, em Sein und Zeit, Platão parecia ser um dos poucos, a par de Aristóteles, a colocar explicitamente a questão do sentido do ser, torna-se agora aquele com quem, e a partir de quem, o ser se afunda definitivamente no esquecimento.

(BOUTOT, A. Heidegger et Platon: Le problème du nihilisme. Paris: PUF, 1987)

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