Platão: Uma imagem da alma humana

Excerto das páginas 443-445, da tradução portuguesa da Fundação Calouste de “A República” de Platão (588b-589c)

— Modelemos em pensamento uma imagem da alma, a fim de o autor daquelas palavras se aperceber do que disse.

— Que imagem? [c]

— Uma como a daquelas criaturas antigas da mitologia — a Quimera1, Cila2, Cérbero3 — e muitas outras de quem se diz que tinham formas múltiplas num só corpo.

— Diz-se, realmente.

— Modela então uma criatura monstruosa, composita e policéfala, com cabeças de animais domésticos e selvagens a toda a volta, e capaz de alterar, ou de criar por si, todas essas formas.

— É obra para um escultor hábil. Mesmo assim, como o [d] pensamento é mais moldável do que a cera ou qualquer outra matéria dessa espécie, vamos modelá-la.

— E agora modela outra forma de um leão, e outra de um homem; mas que a primeira seja muito maior do que as outras e a seguir a segunda.

— Isso é mais fácil, e já está pronto.

— Reúne então essas formas, que são três, numa só, de maneira a formarem um todo, umas com as outras.

— Já estão reunidas.

— Cobre-as no seu todo, exteriormente, com uma forma única, a de um homem, de maneira que, a quem não [e] puder ver-lhe o interior, mas apenas aviste o invólucro exterior, pareça um só ser animado — um homem.

— Já estão cobertas.

— Digamos agora a quem sustentar que é útil a esse homem ser injusto, e que não lhe traz vantagem proceder com justiça, que o que ele faz não é mais do que declarar que lhe é útil alimentar e fortalecer o monstro de mil formas, o leão [589a] e o seu séquito, matando à fome e enfraquecendo o homem, de maneira que cada um dos outros o arraste para onde quiser, sem contribuir para os acostumar um ao outro nem para os tornar amigos; em vez disso, deixa-os morder-se entre si e devorar-se reciprocamente na luta,

— É isso mesmo que sustentará quem louvar a injustiça.

— Por outro lado, quem disser que é útil ser justo não estará a afirmar que se deve fazer e dizer aquilo de que [b] resulte que o homem interior tenha o máximo domínio sobre o seu todo e cuide da sua cria policéfala, como se fosse um agricultor, que alimenta e cultiva as espécies domésticas e impede de crescer as selvagens, fazendo da natureza do leão sua aliada, preocupando-se com todos em geral, tornando-os amigos uns dos outros e de si mesmo e sustentando-os desse modo?

— Quem louvar a justiça é exatamente assim que há-de falar.

— Logo, de todas as maneiras, quem fizer o elogio da [c] justiça falará verdade, e quem fizer o da injustiça mentirá. Com efeito, quem tiver em conta o prazer, a boa fama e a utilidade, se exaltar a justiça, fala verdade; mas, se a censurar, a sua crítica é malsã, pois não sabe o que critica.


  1. O escoliasta descreveu assim a Quimera: «leão na frente, serpente atrás, cabra no meio». 

  2. Cila tinha voz de cadela, doze pés disformes, seis pescoços, cada um com uma cabeça terrível, dotada de três filas de dentes — segundo a descrição da Odisséia xii. 85-100. 

  3. O cão do Hades tinha cinquenta cabeças em Hesíodo, Teogonia 310-312; uma tradição posterior reduz esse número a três.