O uso do mito em Platão é ainda objeto de controvérsia. As explicações baseadas na suposição de Platão se situar no limiar de uma passagem do mito à razão (v. Do Mito à Razão) são muito comuns, como explica Geneviève Droz (Les mythes platoniciens), inclusive reforçando seu argumento pelas próprias críticas encontradas em Platão aos poetas, ilusionistas mentirosos, rejeitando a ficção poética enquanto opinião incerta e suspeita. No entanto, surpreende a todos os estudiosos da Obra de Platão como esta se nutre de relatos míticos: tomados da tradição, manipulados ao gosto de sua fantasia ou das necessidades da discussão, Platão chega até a inventar partes. Há poucos diálogos que não façam uso de mitos e alegorias. Pode-se até dizer que ele cria um gênero novo, posto que o mito platônico, embora inspirado não se confundo como os relatos da mitologia grega, e as histórias lendárias tais quais aquelas legadas por Homero e Hesíodo.
O que é então o mito platônico? como reconhecê-lo? qual sua função na economia do diálogo:
1. O mito se apresenta à maneira de um “relato fictício”: imagina uma situação, relata uma estória, que, como toda estória, compreende uma ação e personagens: é Eros, Prometeu ou Tot, é um cativo ou um demiurgo, é a alma viajando no Hades ou se nutrindo de verdades. A forma narrativa do mito, fantasista, bufona ou dramática, o aproxima da fábula, da parábola, da alegoria, mas o distingue da simples imagem, da metáfora, do paradigma ou da analogia que se tece em toda obra de Platão.
2. O mito rompe com a demonstração dialética; interrompe o discurso conceitual e se propões, mais ou menos explicitamente, como um outro tipo de discurso: não mais abstrato mas imagético, não mais dedutivo mas narrativo, não mais argumentativo mas sugestivo. Faz apelo à imaginação ao invés do raciocínio, por vezes à sensibilidade estética ou ao sentimento religioso. Mas ao mesmo tempo que interrompe o discurso argumentado, o substitui. E precisamente quando o raciocínio não é suficiente ou não convém mais: seja por que o sujeito, frequentemente o interlocutor de Sócrates, está incômodo em sua compreensão, seja sobretudo porque o objeto não se deixa facilmente pôr em conceitos. O discurso mítico se oferece como único a poder falar de certas coisas: o mundo sensível em perpétuo devir sobre o qual nossa inteligência tem tão pouca apreensão, as grandes questões essenciais da metafísica (a alma antes e depois de sua estadia no corpo, a divindade e o Bem…), em resumo o que é ao mesmo tempo aquém e além do discurso possível da filosofia.
3. O mito não enquanto tal um método para buscar a verdade, é um meio para expôr o verosímil. Se se exclui os casos limites dos relatos alegóricos, da finalidade essencialmente lúdica ou pedagógica, simples “auxiliares” a serviço da reflexão ou da compreensão, o mito, intervindo aí onde a dialética se mostra inoperante, não pode pretender à verdade: propõe, como bem mostrou Victor Brochard (LES MYTHES DANS LA PHILOSOPHIE DE PLATON), uma hipótese plausível ainda que não verificável, “sugere o provável”. Este provável por conseguinte não deve ser subestimado: se é o que se pode dizer de melhor, pode ser também o objeto de uma forte adesão interior, de uma intensa certeza íntima. “Grande é a esperança” que aportam por exemplo os mitos escatológicos, se “a eles se adiciona fé”.
4. Se o mito não tem pretensão à verdade certa, tem pretensão sim ao sentido. Não deve ser lido ou escutado por si mesmo: tem um sentido oculto, é portador de mensagem, demanda portanto ser superado, traduzido, interpretado, decifrado; e se o autor não dá por vezes chaves de uma decifração possível (como no caso da alegoria, cujo sentido é explicitado imagem após imagem), o mito permanece frequentemente muito livremente aberto em muitos níveis de significação que um simples comentário não poderia esgotar.
5. O mito contém implicitamente uma dupla “intenção pedagógica”: a princípio, certamente, porque esclarece o interlocutor em dificuldade e desembaraça o espírito fatigado, ou se faz o sustentador de uma discussão que escorrega e patina. Neste caso, ajuda tanto à reflexão quanto à compreensão, mesmo se não é senão um intermediário (metaxu) ou uma propedêutica. Mas — altamente educador — aspira também a “tornar melhor”, mais “corajoso” no Mênon, mais sereno diante da morte nos mitos escatológicos… O mito não tem somente uma “moral”, no sentido onde se diria das fábulas de Esopo, é um estimulante moral às vezes mesmo um fermento espiritual. Eis em que é superior (Fedro, 245c) às fábulas homéricas que desnaturalizam o divino, mais “útil” que o discurso sofístico (Mênon, 86b) que entretém preguiça e abandono intelectuais, eventualmente mais “eficaz” mesma que a demonstração dialética, posto que dinamiza a investigação, alimenta a fé e enriquece a esperança.