(Excertos de Jean Brun, “Platão”)
1. A construção do mundo. — É a este tema que é dedicado o Timeu, que Brunschvigc chama um «romance físico». Neste diálogo surgem muitos temas pitagóricos, a ponto de, desde a Antiguidade, correr uma lenda, relatada por Diógenes Laércio, segundo a qual Platão teria aproveitado uma viagem ao Egito para comprar a preço de ouro escritos secretos de Pitágoras e do seu discípulo Filolau, que teria depois plagiado no Timeu.
O mundo foi feito a partir de um «modelo» pelo Demiurgo. Esse modelo é o vivo em si, o mundo das ideias que permanece eterno e não conhece o devir. A cópia, essa, é aquilo que devêm sempre e nunca existe plenamente. O Demiurgo quis que todas as coisas fossem boas e fez o mundo de maneira a realizar uma obra que fosse, por natureza, a mais bela e a melhor. O mundo nasceu, portanto, da Providência do Deus.
Esse mundo é um vivo que possui uma Alma. Para a obter, já o vimos, o Demiurgo misturou o Mesmo e o Outro e obteve assim uma terceira substância; depois de ter misturado essas três substâncias dividiu a Alma do mundo segundo uma série geométrica pitagórica. Essa Alma do mundo está colocada no centro do mundo e estende-se através de todo o corpo e mesmo para lá dele (34 b).
O Deus criou então as quatro espécies de vivos: a espécie celeste dos deuses; moldados no fogo, têm uma face arredondada e avançam segundo a regra do Mesmo; ao lado desses deuses verdadeiros estão os deuses das lendas de Homero e Hesíodo; os pássaros constituem a espécie alada que circula nos ares; os peixes a que vive na água; e na terra está a espécie que anda.
Nesta última inclui-se o homem. A sua alma é uma parte da Alma do Todo. As almas foram semeadas nos instrumentos do tempo, cada uma no que lhe convinha. O corpo no qual se encontra é uma mistura dos quatro elementos: a água, o ar, a terra e o fogo.
Mas ao lado do paradigma eterno e da sua cópia, Platão dá lugar a um «terceiro gênero» que ele chama de «receptáculo», «ama», «mãe», «vaso», «em que» (48 e e seg.), ou seja, a chora. Esta noção de receptáculo e de chora permanece ainda bastante obscura e foi interpretada de modos muito diferentes pelos comentadores1. No entanto, a maioria concorda em ver nela a «extensão», e parece de fato ser isso o «em que» de que nos fala Platão. Importa, no entanto, para compreender essa chora platônica, afastarmos tudo aquilo que essa noção de extensão pode significar, desde Descartes, para nós em geometria. A extensão de que nos fala Platão é no fundo aquilo «em que» as coisas estão separadas uma das outras; se repararmos que chora e choris pertencem à mesma família, talvez conviesse traduzir chora por deslocação, termo que contém ao mesmo tempo uma ideia de localização e a de uma cisão ou quebra que, em Platão, se inscrevem na construção do mundo, profundamente separado do seu modelo musical eterno visto que é rejeitado no tempo.
O tempo é para Platão a imagem móbil da eternidade, não é uma realidade que se basta a si própria. A verdadeira realidade em si é a eternidade que pertence apenas a esse paradigma a partir do qual se fez o mundo. A eternidade é o modo de ser das ideias que não nascem nem perecem, por isso «a expressão é» só se aplica à substância eterna. Ao contrário, era, será, são termos que convém guardar para aquilo que nasce e progride no Tempo. São de fato apenas mudanças; mas aquilo que é imutável e imutado não se torna mais velho nem mais novo com o Tempo, e, mesmo que assim fosse, não o é agora nem o será no futuro. Ao contrário, uma tal realidade não traz consigo nenhum dos acidentes que o devir implica para os termos que se movem na ordem sensível, mas esses acidentes são variedades do Tempo, que imita a eternidade e se desenvolve em círculos segundo o Número» (38 a). O Tempo e o devir são o domínio da geração e da corrupção, são eles que imprimem às coisas da terra esse carácter, que lhes retira a permanência e a estabilidade que pertencem apenas ao ser.
2. A estrutura da terra. — Encontramos no final do Fédon (107 d e seg.) um mito geográfico do destino das almas no qual se encontram conciliados os dados cosmológicos, uma concepção finalista do universo e as exigências da moral segundo a qual os maus devem pagar as suas faltas e os bons devem ser recompensados, ponto de vista que implica a sobrevivência da alma depois da morte do corpo2.
A terra que habitamos, diz-nos Platão, não representa a totalidade da terra. Existem três terras concêntricas, uma por cima da nossa e outra por baixo. A terra superior é a terra pura, um paraíso. Não a vemos porque habitamos numa das suas depressões, estamos na situação em que se encontraria um homem que estivesse no fundo do mar e que tomasse o fundo do mar pela superfície e o mar pelo céu. Essa terra pura, para um espectador situado acima, teria o aspecto de um balão com doze quartos de cor, os astros movem-se nela, não no ar, mas no éter; tudo aí é mais belo e os homens ignoram as doenças, falam de frente com os deuses que lhes revelam o seu futuro. A nossa terra é só uma depressão dessa terra superior, o ar que nela respiramos é só um sedimento abandonado pelo éter. A doença e a corrupção reinam nela.
A terra inferior é o campo do invisível, é aí que mergulham os rios que desaparecem à frente dos nossos olhos; todos os precipícios interiores comunicam com o Tártaro. Essa terra inferior é o campo das expiações, é a morada de Hades, os mortos são aí julgados, mas ficam lá apenas aqueles que têm penas para cumprir. Os mortos são divididos em quatro categorias. Os mais justos, os filósofos, irão ter, ao lado dos deuses, uma vida incorporai e feliz. Aqueles que foram justos e injustos irão para o Aqueronte e para o lago Aquerúsia, pagarão o castigo das suas faltas, receberão o preço das suas boas ações e, depois de terem expiado mais ou menos longamente, serão novamente lançados no ciclo das gerações. Aqueles cujos crimes foram cometidos sob a influência da cólera irão para o Piriflegetonte, o rio das chamas ardentes, e para o Cocito; implorarão o perdão das suas vítimas que estão sobre o lago Aquerúsia. Se estas os perdoarem, as suas penas podem ter fim, senão serão precipitados no Tártaro. Quanto aos que fizeram crimes imperdoáveis, são atirados para dentro do Tártaro de onde nunca mais sairão.
3. O mito do «Político» (268 d e seg.; cf. Leis, IV, 713 a). — Organiza-se segundo um tema cósmico e segundo um tema antropológico; Platão apresenta-o como uma brincadeira de crianças. Ora é Deus que conduz o mundo imprimindo-lhe uma rotação direta, ora deixa-o ir e o mundo roda então sobre si próprio mas em sentido oposto, Deus segura-o de novo para o lançar novamente, deixa-o ir de novo, e por aí em diante. P.-M. Schuhl deu uma ilustração muito clara deste mecanismo3: tome-se um aparelho suspenso por um fio e repousando sobre uma base muito pequena, façamo-lo rodar no sentido dos ponteiros do relógio, o fio torce-se sozinho, se largarmos o aparelho aquele destorce-se e gira no sentido de rotação inversa da dos ponteiros.
Sobre este tema cósmico enxerta-se o tema antropológico da dupla origem dos homens, talvez inspirado por Empédocles que falava de dois movimentos contrários, um indo do Múltiplo ao Uno, e animado pela Amizade, o outro indo do Uno ao Múltiplo e animado pelo ódio. Quando Deus faz girar o mundo, o mundo gira no sentido correto, ou seja, as coisas vão da morte à vida no sentido de um rejuvenescimento, os velhos tornam-se novos e regressam à flor da sua primavera e os homens nascem da terra. Essa época era a idade de Crono, os homens limitavam-se a deixar-se viver, pois «era Deus que lhes dava pastagem e os regia em pessoa» (271 e). Quando essa raça, nascida da terra, desapareceu e recaiu em semente, o piloto do universo largou este último e ao tempo de Crono sucedeu o tempo de Zeus, que conhecemos, no qual tudo funciona ao contrário, da juventude ao envelhecimento. É a idade do sofrimento, o homem tem de trabalhar e dominar uma natureza decadente; mas os deuses tiveram piedade dos homens e trouxeram-lhes o fogo, as técnicas e as sementeiras4.
4. O mito da Atlântida (Timeu, 20 d, e Crítias, 108 d). — Notemos antes de tudo que é difícil saber se Platão considerava a Atlântida um mito verdadeiro ou apenas um episódio histórico; mas o que se pode dizer é que o tema da Atlântida não tem em Platão um sentido especificamente geográfico. Quando os deuses dividiram entre si a terra, Dice, a deusa da justiça, deu a cada um a região que este desejava; os deuses conduziram então os homens como o fazem os pastores e os pilotos. Hefesto e Atena presidiram o destino de Atenas. E o sacerdote egípcio, que fala a Sólon no Crítias, diz-lhe que Atenas é mais antiga que Sais e que outrora os Atenienses ultrapassavam todos os outros homens em sabedoria como convém a filhos que são guiados pelos deuses (Timeu, 24 d, Crítias, 112 e). Mas catástrofes geográficas surgiram e deslocaram a terra, os homens deixaram de ser guiados pelos deuses, tornaram-se como exilados que perderam a sua pátria primitiva e mesmo a recordação desta. Ora, outrora, a Acrópole, a Pnix, o monte Lica-beto, não eram esses três promontórios que dominavam Atenas; faziam parte de uma só extensão de terra onde corria, no Verão e no Inverno, uma fonte abundante. Hoje essa planície abaixou-se, a fonte desapareceu, só restam dela alguns riachos que depressa se perdem dentro de terra. Quanto à Grécia, é agora um conjunto de pequenas ilhas que lhe dão a aparência do «esqueleto de um corpo ressequido pela doença» (Crítias, 111 b).
Poderíamos dizer que os homens são a imagem desses atenienses que perderam inclusivamente a recordação da sua antiga pátria; a tarefa da maiêutica socrática é de lhes devolver a via capaz de os levar a essa terra original que perderam. Por isso, diz Platão, aprender é recordar: todo o saber é reminiscência.
Limitemo-nos a citar quatro obras essenciais para a compreensão do Timeu: Proclus, Commentaires sur le Timée, trad. A.-J. Festugière (4 vols., Paris, 1966-1963). A. E. Taylor, A commentary on Plato’s Timaeus. J. Moreau, L’âme du monde de Platon aux stoïciens. Th.-H. Martin, Etudes sur le Timée de Platon, 2 vol., Paris, 1841; rééd., Nova Iorque, 1976. ↩
Cf. G. Rodier, «Les preuves de l’immortalité de l’âme dans le Phédon» (in Et. de philo. gr.). J. Moreau, «L’argument ontologique dans le Phédon» (Revue de philo., 1947). M. Gerroult, «La médit. de l’âme sur 1’Âme dans le Phédon» (Revue de Méta., 1936). ↩
P.-M. Schuhl, La fabulation platonicienne (Paris, 1947), pp. 89 e seg. ↩
Cf. o mito de Prometeu e de Epitemeu no Protágoras, 320 c e seg. ↩