Emanação

O Uno primigênio (Ur-Eine) (hén) produziu o Noûs e o múltiplo por emanação (apórroia). Nas Enéadas, encontramos também as palavras éklampsis e éklapsis, do verbo eklámpein, traduzido, às vezes, por emanar. Porém, stricto sensu, significa “espargir luz”, “irradiar luminosidade”. Plotino emprega esses termos em sentido figurativo, como também o faz com o verbo aporreín e o substantivo próodos. Logo, não se pode dizer que Plotino é emanatista em sentido panteísta. Claramente ele afirma que “a causa não é a mesma coisa que o causado.

O autor das Enéadas faz clara distinção entre originante e originado, entre causa e efeito”. Por essa razão, concordamos com Giovanni Reale, quando diz: “Orbene, di ’emanazione’ Plotino parla solo nelle sue immagini, mentre la sua dottrina ne è la negazione”. Concordamos também com o mesmo autor, quando justifica a sua asserção: a) as hipóstases sucessivas (isto é, as instâncias mediadoras) do Uno não são de fato um fluxo da substância do Uno; b) em consequência, não são a substância do Uno despotenciada; c) não derivam do Uno por mera necessidade natural (física).

Por que se dá a emanação? Responde Plotino: “Ele (Uno) é perfeito, porque nada procura, de nada tem necessidade; por isso, pelo assim dizer, ele desborda, e a sua superabundância gera outra coisa”. Nada perde de si, nada acrescenta a si, nem deseja aumentar-se. A produção do Uno é livre, porquanto ninguém está acima dele para obrigá-lo a agir. E também necessária, porque ele é a própria necessidade e a lei de tudo o mais. Nada produz por acaso (týchei), mas é causa (aitía) que organizou tudo racionalmente. Não se trata de causalidade mecanicista, no sentido de depauperar ou tornar melhor o Uno, por ser perfeitíssimo.

O Uno, dir-se-ia, sente-se “obrigado” a comunicar a sua bondade – ”bonum est diffusivum sui” – e a fazer as coisas partícipes de sua perfeição. “Esse surgimento é, num sentido, necessário, porque não pode conceber-se que não ocorra ou que ocorra de outro modo. Porém, é totalmente espontâneo, no sentido de que o Uno não está sujeito a compulsão externa nem interna”. Por isso a emanação plotiniana não pode ser interpretada como cego automatismo. Ela é de fato resultado de uma iniciativa pessoal . A errônea interpretação das metáforas empregadas pelo licopolitano – difusão da luz, do perfume, do calor, etc. -, em face da dificuldade de explicar logicamente o processo da emanação, conduziu à ideia de que Plotino é panteísta.

Plotino intuiu a emanatio como explicação última da origem do múltiplo.

Nenhuma necessidade (carência), mas a perfeição e a bondade constituem a causa da emanação. Com isso fica excluída a ideia de emanação automática que as metáforas poderiam sugerir.

O filósofo licopolitano compara o Uno a) com o fogo de que emana calor; com a neve que espalha o frio; com a substância odorífera que exala o perfume; com o ser vivo que gera outros seres vivos; b) com a luz que irradia de uma fonte luminosa, sem se esgotar jamais; c) com a fonte de água inexaurível, formadora de rios; d) com círculos concêntricos.

Do Uno provém o Noûs, o qual, pois, é posterior ao originante, mas anterior àquilo que vem depois dele, isto é, a Alma.

Para não ser entendido erroneamente, convém aprofundar o sentido de emanatio. Em Plotino, a substância do Uno não é idêntica à dos entes dele provenientes. O Noûs constitui uma modalidade ontológica distinta, isto é, uma outra hipóstase. “O Uno, como fonte dos melhores bens, não sofre diminuição”. Por outra, ao gerar o Noûs, denominado hèn pollá, ele é imagem eterna do Uno. O Intelecto existe desde sempre como expressão eterna do Uno. Contemplando o Uno, o Noûs gera em si mesmo o mundo das ideias (kósinos noêtós). Por essa razão, o Noûs é cognoscente e conhecido, contemplante e contemplado, sujeito e objeto; é vida infinita, na dimensão imaterial e atemporal. Ele não precisa procurar fora de si o conteúdo do seu pensamento, por já encontrá-lo em si mesmo. É plenamente feliz. Por que o Noûs deve volver-se (epistréphein) ao Uno? Por ser ele princípio e causa final. “Ele é a realidade da qual todas as coisas dependem, a qual todas desejam como princípio e da qual têm necessidade”. O volver-se, o retornar ao Uno confere ao Noûs o estatuto de intelecto e de ser. Em outras palavras, do Uno ele recebe a sua determinação. É que, no início, o Noûs “não era ainda um intelecto que contemplava o Uno; era um olhar (contemplar) sem inteligência”. Por meio dessa contemplação, no Noûs constitui-se o universo inteligível, o kósinos noêtós, os inteligíveis simplesmente. A relação do Noûs (e o mesmo vale depois para a Alma) com o Uno não consiste tanto em ter provindo dele, mas em voltar-se a ele, em converter-se a ele.

Contrariamente a Platão, os inteligíveis encontram-se no Intelecto e não num mundo à parte. E mais. Há perfeita coincidência entre o Noûs e o inteligível, entre o ato de conhecimento e o objeto de conhecimento. Estamos, aqui, ante o máximo esplendor da verdade, ante a plena coincidência entre o sujeito e o objeto.