Segundo estudo de Pierre Hadot (Plotin, Porphyre : Etudes néoplatoniciennes), é justamente no neoplatonismo que se dá uma maior atenção à chamada “diferença ontológica”, preconizada por Heidegger, a diferença entre ser e ente. A ênfase original dada ao Ser, enquanto Ente superior, cede algum lugar ao Ser, enquanto ser. Em Damáscio, esta “diferença” e por conseguinte um ensaio de reflexão sobre o ser enquanto ser, se dá através das palavras hyparxis e ousia, que caracterizam respectivamente o ser e o ente, o ser puro e o ser essência ou substância. Esta diferença no entanto é enfatizada em Marius Victorinus.

Hadot apresenta o momento histórico onde, na história do pensamento ocidental, o ser-infinitivo foi claramente distinguido do ser-particípio, sob a forma de uma distinção entre einai e on, transformada em seguida em uma distinção entre hyparxis e ousia nos neoplatônicos. Uma série de contingências resultaram neste momento histórico, a começar pela formulação empregada por Platão no início da segunda hipótese do Parmênides.

A segunda contingência histórica foi certamente a exegese neoplatônica do Parmênides, sendo a primeira delas que se conhece de Plotino. Ele faz corresponder a cada hipótese uma hipóstase, um tipo de unidade. A primeira hipótese (o Uno é o Uno) corresponde à unidade absoluta, quer dizer à primeira hipóstase, o Uno. Aí se encontra toda a teologia negativa. A segunda hipótese (O Uno é) corresponde a uma Unidade onde começa a se manifestar o Múltiplo, quer dizer ao Uno-Ente para retomar a terminologia de Plotino. Esta segunda hipóstase é para Plotino um segundo Uno, o Um-Múltiplo, quer dizer o primeiro número, a primeira ousia, a Ideia de Essência, princípio de todas as essências, a primeira Inteligência, o primeiro Inteligível. A ousia aparece assim em um segundo nível da realidade, no nível da segunda hipóstase e se funda na primeira hipóstase. Assim Plotino retoma Aristóteles e afirma que sempre a unidade funda previamente o ser.

A terceira contingência é por conta dos escrúpulos de um comentador neoplatônico do Parmênides. No fragmento 5 do “Anônimo de Turin”, vemos o comentador se aplicar na exegese da passagem do Parmênides: “Se o Uno é, é possível que seja e não participe da ousia?” Para o comentador Platão definiu o “Ente” como o “Uno participando da ousia”. Onde “participar tem o sentido de “ser parte com”, “formar um todo em se misturando com”, mas também o sentido neoplatônico de “receber uma forma que é o reflexo de uma Forma transcendente”. Nos dois casos “ser participado” equivale a “ser atribuído”, sendo no primeiro mistura de duas formas no mesmo nível ontológico e no segundo participação de um sujeito em uma Forma transcendente.

Resumindo a posição deste comentador:

O “é” ou “ser” puro = O primeiro Uno
O Uno que “é” = O segundo Uno

O “é” do Uno que “é” é derivado do “ser” puro. Este último é sem sujeito nem atributo, é absoluto. O “é” do Uno que “é”, ao contrário, é acoplado com um sujeito, com o segundo Uno que recebe este “é” derivado do “ser” puro.

A distinção entre ser-infinitivo e ser-particípio terá pouco eco em Proclo e Damáscio, mas vem de modo indicustível em Marius Victorinus, o primeiro Uno, o Pai da teologia cristã, é agir puro e ser puro (esse purum), não determinado e não participado, logo incognoscível, o segundo Uno, o “Filho” da teologia cristã, é o Ente, a primeira essência, que receb o ser do Pai. Boécio também vai introduzir uma oposição entre esse e quod est, que corresponde à oposição ente ser e ente.

Com efeito o neoplatonismo de Proclo e Damáscio conhece uma distinção ontológica muito próxima dessa, sob a forma de uma oposição entre hyparxis e ousia, seguramente proveniente da diferença ontológica entre ser e ente. De qualquer modo, claramente formulada em Victorinus que dá as seguintes definições de existentia e substantia (correspondentes a hyparxis e ousia): A existência difere da substância, posto que a existência é o ser em si, o ser sem adição, o ser que não está nem em outro nem sujeito de um outro, mas o ser em si, uno e só, enquanto a substância não tem senão o ser sem adição, mas tem também o ser-algo-de-qualificado. Pois ela está subjacente às qualidades postas nela e eis porque se chama sujeito.