POL 300c-303d: Comparação dos regimes políticos bastardos

ESTRANGEIRO — Esses códigos não seriam, pois, em cada domínio, imitações da verdade executadas o mais perfeitamente possível, sob a inspiração daqueles que sabem?

SÓCRATES, O JOVEM — Sem dúvida.

ESTRANGEIRO — Entretanto, se bem nos lembramos, havíamos dito que o homem competente, o verdadeiro político, inspirar-se-á na maioria dos casos unicamente em sua arte e não se preocupará, de modo algum, com a lei escrita se lhe parecer que um novo modo de agir valerá mais, na prática, do que as prescrições redigidas por ele e promulgadas para o tempo de sua ausência.

SÓCRATES, O JOVEM — Foi, realmente, o que dissemos.

ESTRANGEIRO — Quando o primeiro indivíduo ou a primeira massa, possuindo leis, resolvem agir contrariamente a elas, acreditando assim agir melhor, não procedem, dentro de seu alcance, da mesma forma como o político verdadeiro?

SÓCRATES, O JOVEM — Perfeitamente.

ESTRANGEIRO — Agindo, por ignorância, ao procurar imitar a verdade, eles a imitarão erradamente. Mas se agirem com competência, em lugar de uma imitação, não teremos a própria realidade em toda a sua verdade?

SÓCRATES, O JOVEM — Perfeitamente.

ESTRANGEIRO — Anteriormente, entretanto, concordamos em que a massa jamais seria capaz de assimilar arte alguma.

SÓCRATES, O JOVEM — Continuamos de acordo.

ESTRANGEIRO — Se existe pois uma arte real, a massa dos ricos ou do povo jamais se apropriará dessa ciência política.

SÓCRATES, O JOVEM — Não seria possível.

ESTRANGEIRO — É necessário pois que tais simulacros de constituições, para imitar o mais perfeitamente possível esta constituição verdadeira — o governo do único competente — procurem, uma vez estabelecidas suas leis, jamais fazer algo contra as leis escritas e os costumes nacionais.

SÓCRATES, O JOVEM — Disseste bem.

ESTRANGEIRO — Quando pois são os ricos que realizam esta imitação, a constituição se chama uma aristocracia; mas se não observam as leis, será uma oligarquia.

SÓCRATES, O JOVEM — Provavelmente.

ESTRANGEIRO — Se, porém, governa um chefe único, de acordo com as leis, imitando o chefe competente, chamamo-lo rei, sem servir-nos de nomes diferentes para os casos em que esse monarca, respeitador das leis, seja guiado pela ciência ou pela opinião.

SÓCRATES, O JOVEM — É o que parece.

ESTRANGEIRO — Mesmo quando o chefe único possui verdadeiramente a ciência, nós lhe daremos, sem hesitar, esse mesmo nome de rei, pois o conjunto das constituições que distinguimos aqui não comporta mais de cinco nomes.

SÓCRATES, O JOVEM — Assim é, pelo menos ao que parece.

ESTRANGEIRO — E se este chefe único age sem levar em conta as leis, nem os costumes e, contrariando o chefe competente, pretende violar a letra escrita a pretexto de assim exigir o bem maior, quando, na verdade, são a cobiça e a ignorância que inspiram sua imitação, não merecerá ele, sempre e em qualquer parte, o nome de tirano?

SÓCRATES, O JOVEM — Sem dúvida.

ESTRANGEIRO — Eis, pois, como nasce o tirano, o rei, a oligarquia, a aristocracia e a democracia: pela aversão que os homens sentem contra o monarca único de que falamos. Recusam-se a acreditar que alguém possa jamais ser bastante digno de tal autoridade para pretender e poder governar com virtude e ciência, distribuindo a todos, imparcialmente, justiça e equidade, sem injuriar, maltratar e matar a quem lhe aprouver, em todas as ocasiões. Pois um monarca como descrevemos seria aclamado, regeria e governaria com felicidade por uma única constituição de absoluta retidão.

SÓCRATES, O JOVEM — Como duvidá-lo?

ESTRANGEIRO — Entretanto, já que na realidade as cidades não se assemelham a uma colmeia, produzindo reis reconhecidos como únicos por sua superioridade de corpo e de alma, é necessário, ao que parece, que os homens se reúnam e façam as leis procurando seguir os traços da verdadeira constituição.

SÓCRATES, O JOVEM — Assim parece.

ESTRANGEIRO — E quando estas constituições se baseiam no princípio de regular sua ação pela letra escrita e pelo costume, e não pela ciência, teríamos de que admirar-nos, Sócrates, por tudo o que acontece de mal e tudo o que delas adviesse? Em qualquer outro setor um tal método arruinaria completamente todas as obras. Não deveríamos, antes, admirar essa força inata de resistência que uma cidade possui? Pois, não obstante esse mal que corrói as cidades, desde tempos imemoráveis, algumas dentre elas permanecem sem se deixarem destruir; muitas, de tempos a tempos, tais como navios que soçobram, perecem, pereceram e perecerão ainda, pela incúria de seus indignos pilotos e marinheiros que, culpados da mais grave ignorância das noções fundamentais, e nada conhecendo da política, creem possuir essa ciência em todos os seus pormenores, com maior exatidão que as demais.

SÓCRATES, O JOVEM — É a mais pura verdade.

ESTRANGEIRO — Qual é pois, entre essas constituições imperfeitas, aquela onde a vida é menos desagradável — pois é desagradável em todas — e qual é a mais insuportável? Eis o que nos é necessário ver, ainda que isso tenha pequena importância com relação ao nosso assunto atual. Mas talvez, de um modo geral, é essa questão que domina todas as nossas ações.

SÓCRATES, O JOVEM — Examinemo-la. Como evitá-la?

ESTRANGEIRO — Muito bem. É necessário dizer-te agora que, dessas três, uma é, ao mesmo tempo, a mais desagradável e a melhor.

SÓCRATES, O JOVEM — Que queres dizer?

ESTRANGEIRO — Que os governos de um só, de alguns, ou da multidão, constituem as três grandes constituições de que falamos no início desta enorme conversa.

SÓCRATES, O JOVEM — É verdade.

ESTRANGEIRO — Dividamos cada uma delas em duas partes, formando seis, e coloquemos de lado a constituição verdadeira, como sétima.

SÓCRATES, O JOVEM — Como?

ESTRANGEIRO — O governo de um apenas dá origem, como dissemos, à realeza e à tirania; o governo de alguns origina a aristocracia, de belo nome, e a oligarquia; quanto ao governo do grande número havíamos considerado apenas o que chamamos democracia; vamos agora, entretanto, considerar nela também, duas formas.

SÓCRATES, O JOVEM — Quais? Como a dividiremos?

ESTRANGEIRO — De maneira semelhante à das demais, ainda que ela não possua um segundo nome; em todo o caso, é possível governar conforme ou em desacordo com as leis, nela como nas demais.

SÓCRATES, JOVEM — Realmente.

ESTRANGEIRO — Ora, no momento em. que buscamos a constituição verdadeira, essa divisão não era necessária, como demonstramos. Entretanto, afastada essa constituição perfeita e aceitas, como inevitáveis, as demais, a legalidade e a ilegalidade constituem, em cada uma delas, um princípio de dicotomia.

SÓCRATES, O JOVEM — Aparentemente, de acordo com essa explicação.

ESTRANGEIRO — Muito bem. A monarquia, unida a boas regras escritas a que chamamos leis, é a melhor das seis constituições, ao passo que, sem leis, é a que torna a vida mais penosa e insuportável.

SÓCRATES, O JOVEM — É possível.

ESTRANGEIRO — Quanto ao governo do pequeno número, sendo o de “poucos”, ele se situa entre a unidade e o grande número e é necessário considerá-lo intermediário entre os dois outros. Finalmente o da multidão é fraco em comparação com os demais e incapaz de um grande bem ou de um grande mal, pois nele os poderes são distribuídos entre muitas pessoas. Do mesmo modo, esta é a pior forma de constituição quando submetida à lei e a melhor quando estas são violadas. Estando todas elas fora das restrições da lei, é na democracia que se vive melhor; sendo, porém, todas bem ordenadas esta é a última que se deverá escolher. Sob este ponto de vista a que nomeamos em primeiro lugar é a primeira e a melhor de todas exceto a sétima, pois esta se assemelha a um deus entre os homens e é necessário colocá-la à parte de todas as demais constituições.

SÓCRATES, O JOVEM — Parece que deve ser, e que assim é: façamos, pois, como dizes.

ESTRANGEIRO — Por conseguinte, todos aqueles que desempenham um papel nessas constituições, exceto aqueles que possuem conhecimentos, devem ser rejeitados como falsos políticos, partidários e criadores das piores ilusões, e visionários eles próprios, momos e grandes charlatães e, por isso, os maiores sofistas entre todos os sofistas.

SÓCRATES, O JOVEM — Eis uma expressão que me parece adaptar-se perfeitamente a esses pretensos políticos.

ESTRANGEIRO — Muito bem. Podemos dizer que estamos agora no desfecho de um drama. Não falávamos, há pouco, de um bando de centauros e sátiros que era necessário separar da arte política? Eis, agora, com grande esforço, feita a separação.

SÓCRATES, O JOVEM — Aparentemente.