pragma (Agamben)

Excerto de AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Ensaios e conferências. Tr. Antônio Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p. 11-14

Sobre essa coisa [pragma] não existe nenhum escrito meu nem jamais poderá existir. Não é, de fato, de modo algum dizível, como as outras disciplinas [mathemata], mas depois de muito tempo em torno da coisa mesma [peri to pragma auto] e depois de muita convivência, de repente, como a luz vinda de uma centelha, ela nasce na alma e se alimenta a si mesma [auto heauto ede trephei] (Carta VII, 341 c 4-d 2).

Essa passagem foi citada muitas vezes em apoio das interpretações esotéricas de Platão e como documento irrefutável da existência de doutrinas não escritas: os diálogos que nossa cultura transmitiu durante séculos como uma venerável herança não diríam respeito àquilo de que Platão se ocupava seriamente, que teria sido reservado a uma tradição unicamente oral! Interessa-nos aqui menos ter uma posição acerca desse problema, certamente importante, do que tentar interrogar o que é aquela “coisa mesma” a que se entrega o pensamento de Platão e que Dionísio presumia sem razão ter compreendido. O que é a coisa do pensamento?

Uma resposta a essa pergunta só pode ser dada por uma leitura atenta da passagem seguinte, que Platão define como “um conto e uma divagação [mythos kai planos]” (Carta VII, 344 d 3) e, ao mesmo tempo, como “um discurso verdadeiro, que foi exposto por mim várias vezes, no passado, mas que me parece ser necessário ainda repetir” (Carta VII, 342 a 3-7). É com a interpretação desse “mito extravagante” que se deve confrontar o pensamento que queira chegar ao esclarecimento de sua “coisa”.

[…]

Uma primeira consideração que podemos fazer (e que já foi feita, entre outros, por Pasquali) diz respeito ao estatuto de indizibilidade que a Carta VII, segundo a leitura esotérica de Platão, atribuiria à coisa mesma. Esse estatuto deve ser moderado na medida em que do contexto resulta claramente que a coisa mesma não é algo que transcende absolutamente a linguagem e nada tem que ver com ela. Platão afirma do modo mais explícito que “se não apreendermos os primeiros quatro elementos” (que compreendem, recordemos, nome e logos), nunca poderemos conhecer completamente o quinto. Em outra passagem importante da carta, ele escreverá que o conhecimento da coisa mesma se acende imediatamente “riscando, uns nos outros, os nomes, os logoi, as visões, as sensações, e pondo-os à prova em refutações benévolas e em discussões conduzidas sem inveja” (Carta VII, 344 b 4-7).

Essas inequívocas afirmações acabam por ser, de resto, perfeitamente coerentes com a estreitíssima relação que os diálogos platônicos instituem entre ideias e linguagem. Quando Sócrates, no Fédon, expõe a gênese da teoria das ideias, afirma: “Parece-me que tenho de procurar refúgio nos logoi, para encontrar neles a verdade dos seres” (99 e 4-6); em outro lugar, ele apresenta a misologia como o pior dos males (89 d 2), e o desaparecimento da linguagem como a própria perda da filosofia (Soph., 260 a 6-7), enquanto, no Parmenides, as ideias são definidas como “o que no mais alto grau se pode apreender com o logos” (135 e 3). E Aristóteles, em sua reconstrução histórica do pensamento platônico, no início da Metafísica, não afirma porventura que a teoria das ideias tinha nascido de uma skepsis en tois logois, de uma busca na linguagem (987 b 33)?

A coisa mesma tem portanto na linguagem seu lugar eminente, ainda que seguramente a linguagem não seja adequada a ela, por causa – diz Platão — de sua fragilidade. Poder-se-ia dizer, usando um aparente paradoxo, que a coisa mesma é o que, mesmo transcendendo de algum modo a linguagem, só é, todavia, possível na linguagem e em virtude da linguagem: a coisa da linguagem, portanto. Quando Platão diz que aquilo que é o objeto de seu pensamento não é de algum modo dizível como os outros mathemata, convirá pôr o acento na última palavra: ela não é dizível do mesmo modo que as outras [13] disciplinas, mas nem por isso é simplesmente indizível. Como Platão não se cansa de repetir (Carta VII, 341 e 1-5), são de ordem ética e não meramente lógica as razões que aconselham a confiar à palavra escrita a coisa mesma. A mística platônica – se tal mística existe – é, como toda mística autêntica, profundamente implicada nos logoi.