ANAXÁGORAS

(Panayiotis Tzamalikos)

A afirmação fundamental de Anaxágoras, “todas as coisas estavam juntas; então o Nous (nous) veio e as pôs em ordem”, tornou-se uma espécie de senha, citada por diversos autores da Antiguidade, por vezes sem que Anaxágoras fosse mencionado. Com efeito, a expressão circulou de modo anemofílico, mais do que por via da leitura da obra do filósofo. Não é certo se o relato de que ele teria sido o primeiro filósofo cuja obra foi publicada na forma de livro, ou se isto é um exagero. O que se pode afirmar, porém, é que o único autor que definitivamente leu sua obra foi Simplício, e, graças somente a ele, possuem-se alguns trechos de extensão considerável das próprias palavras de Anaxágoras, tal como aparecem nos comentários de Simplício ao Sobre o Céu e à Física de Aristóteles, e em seu comentário ao Encheiridion de Epicteto. Nos extensos excertos que ele se ocupou em transcrever, em nenhum lugar Anaxágoras emprega o termo homoimere, nem se encontra ali qualquer termo semelhante. Contudo, o termo cunhado por Aristóteles tornou-se célebre; de fato, tornou-se característico de Anaxágoras, mas o fato é que se tratou de uma invenção de Aristóteles, que lhes forneceu uma definição:

A razão pela qual acabamos de considerá-las junto às substâncias uniformes e fora de sua ordem própria é que, nelas, o nome da estrutura completa é o mesmo que o de uma porção dela (hoti synonuma tois holois ta mere, ten taxin apélaben en tois homoio meresi), e também porque as fontes e os princípios de todas elas são osso e carne.

O termo homoimoreia abriu caminho no vocabulário filosófico, o que é revelador do impacto tremendo de Aristóteles sobre os intelectuais posteriores, não apenas sobre seus comentadores.

Este foi um ponto de partida fatal: homoimoreia foi fantasiosamente associado à matéria, fossem órgãos de animais, fossem porções de materiais inanimados, e foi assim que esse termo interpolado foi acolhido pela posteridade em referência a Anaxágoras.

O termo homoimoreia tem um sentido específico: sugere partes de um todo que são as mesmas que o próprio todo. Em outras palavras, significa que o nome de qualquer parte é o mesmo que o do todo, e que o todo tem o nome de suas partes (synonuma tois holois ta mere). Poder-se-ia supor que Aristóteles poderia ter empregado o termo “homogêneo” (homogenes) para esse propósito, que tem exatamente esse sentido, mas ele decidiu de outro modo e optou por usar esse termo em seu sentido estritamente etimológico, em relação a coisas que pertencem ao mesmo gênero.

Amônio de Alexandria elaborou, explicando que “as partes de um pedaço de madeira também são chamadas madeira, de modo que as partes recebem o nome do todo e não diferem em nada umas das outras”. Do mesmo modo, Simplício escreveu que “cada homoimoreia possui em si mesma todos os atributos do todo” (hekasten homoimoreian homoios to holo panta ekhousin enuparchonta). Miguel Pselo se ocupou em fornecer uma definição clara: “homoimere são os corpos que são os mesmos por toda parte, e a natureza de cada homoimeres é a mesma tanto no todo quanto em qualquer parte dele.” Apesar disso, a leitura cuidadosa das numerosas referências de Aristóteles a Anaxágoras e a seus princípios mostra que o que ele quis dizer por esse termo era, na prática, “homogêneo”, e não aquilo que o termo indica gramaticalmente. Assim, as homoimoreiai são “os princípios de todos os entes” (archai ton onton, ou archai ton panton, ou archai ton holon), o que significa que a existência de todas as coisas deriva delas. Em geral, os spermata de Anaxágoras, que Aristóteles rotulou homoimoreiai, são “os princípios dos entes” (archai ton onton). Portanto, dever-se-ia supor que são princípios, não “elementos” (mas, no que se segue, Aristóteles tem coisas diferentes a dizer): estes últimos são apenas o resultado da interação entre os princípios, o que significa que esta é uma filosofia demasiado distinta das de Tales, Heráclito e outros. Contudo, Aristóteles apresentou as coisas de modo diverso e, com demasiada frequência, identificou de maneira descuidada “princípios” e “elementos”, assim lançando à conta de Anaxágoras a noção absurda de um número infinito de elementos.

A abertura da obra de Anaxágoras era normalmente citada: “todas as coisas estavam juntas; então o Nous veio e as distinguiu” (en homou panta khremata, nous de tauta diekrinen), com pequenas variações de formulação. Certamente, o expoente mais autêntico das próprias palavras de Anaxágoras é Simplício, e os casos de atribuição equivocada são praticamente negligenciáveis. A esta proposição deve-se prestar atenção particular: a palavra que ele empregou para “coisas” é khremata, não pragmata. Normalmente, os dois termos foram tratados como sinônimos, mas há uma diferença pequena, porém importante: khremata (que também significa “dinheiro”), no sentido de “coisas”, é mais abstrato do que o termo pragmata (que também significa “bens”, “eventos”, “estado de coisas” ou os “pertences” de alguém). À vista disso, é fácil compreender sua proposição: “pois nenhuma coisa (ouden gar khrema) vem a ser ou perece, mas ela [surge] de coisas existentes (apo eontôn khrematôn) por meio de mistura ou de separação”, e Simplício explica que este é o pano de fundo contra o qual o axioma “todas as coisas estavam juntas” (en homou panta khremata) deve ser entendido. Em todo caso, todos os fragmentos que citam as próprias palavras de Anaxágoras mostram que ele jamais empregou termos como homoimere ou homoimoreia, nem qualquer cognato deles.

Autores posteriores supuseram que khremata e pragmata são sinônimos, mas essa sinonímia não foi aplicada universalmente em todo o mundo grego: os lexicógrafos asseguravam que esse uso era exclusivo dos habitantes da Ática e daqueles que empregavam esse dialeto. Em qualquer caso, khrema denotava noções mais abstratas, tais como “virtude”, “amizade”, os “pais” ou a ideia de “pátria”: em considerações pertinentes, todas elas eram enunciadas como khrema. Quando Protágoras estabeleceu que “o homem é a medida de todos os khrematon”, ele não queria dizer simplesmente “coisas”, mas situações da vida, ideias e proposições abstratas, e até mesmo pessoas. Não é por acaso que Anaxágoras evitou o termo pragmata e optou por khremata. Pois o que ele pretendia era mais do que meros objetos naturais ou situações de vida: ele sugeria as forças criativas que as fazem ou vir a ser, ou tornar-se isto ou aquilo, as quais apenas poucos filósofos posteriores (a começar por Orígenes e Porfírio) denominaram logoi. O próprio Anaxágoras não atribuiu nome algum a essas causas fundamentais, criativas e coesivas, e simplesmente empregou a designação geral khremata, tanto mais porque (como se argumenta adiante) o estado de “estar junto” precede o das potencialidades, que efetivam o ser atual. Foi Aristóteles quem introduziu o termo homoimoreiai ou homoimere para elas, e este foi o ponto de partida da longa série de suas distorções.

Filópono apreendeu a noção, que era, em linhas gerais, esta: as homoimoreiai são elementos materiais homogêneos, que são feitos de átomos, embora, propriamente falando, não sejam átomos. Mas, uma vez que se aceite que os átomos são fatores mais elementares do que as homoimoreiai, não há como estas serem chamadas princípios, que são anteriores aos elementos. Em outras palavras, Filópono foi inundado pela concepção material de Aristóteles acerca dessa noção. É notável que Pselo tenha fornecido uma definição diametralmente oposta à de Filópono, e definitivamente mais precisa: não são as homoimoreiai que consistem de átomos, mas o contrário; os átomos é que são feitos de homoimoreiai. Ao passo que era uma tendência geral identificar Empédocles com Anaxágoras, apontando apenas algumas diferenças marcantes entre eles (diferenças que alguns autores mal viam como diferenças), o polímata Pselo toca o ponto real:

Tendo feito das homoimoreiai princípios de todos os entes, Anaxágoras sustentou que elas compõem os elementos. E o fato era que, por um lado, Empédocles pensava os elementos como simples e as homoimoreiai como compostas, ao passo que, por outro lado, Anaxágoras considerava as homoimoreiai como simples e os elementos como compostos.

A diferenciação é correta e feliz, ainda que Pselo prossiga endossando a invenção aristotélica de que todas as homoimoreiai são materiais, e abrace a crítica de Platão, segundo a qual, uma vez que as introduziu como princípios, então nada fez do outro princípio, a saber, o Nous.

O erudito historiador anônimo da filosofia (que talvez tenha sido Galeno) acertou em dois pontos. Primeiro, considerou a homoimoreia como princípios, não como elementos. Segundo, apontou o equívoco cometido por filósofos que pensaram que um princípio é a mesma noção que uma causa.

Pois acreditam que um princípio é apenas um hegemonikon de tudo, ao passo que não consideram isso como a causa de o universo ter vindo a ser; por isso, postularam como fator supremo em tudo a causa da qual, como de um substrato, advêm os efeitos.

Do mesmo modo, Miguel Pselo viu nelas algo análogo aos elementos de todos os demais pré-socráticos, os quais invariavelmente ele chamava princípios. É notável que ele seja o único autor, além de Filóstrato, que relata que Anaxágoras veio de Mimas, que era uma montanha entre Eritras e Clazômenas.

Mais tarde ainda, a confusão entre princípios e elementos persistiu, e a noção fundamental de Anaxágoras foi vista como apenas outro nome para os “átomos” de Demócrito, com apenas diferenças menores.

Seguindo Aristóteles, todos esses autores viram a noção de homoimoreiai como indicando partículas materiais. Em conformidade com isso, viram o Nous como análogo ao Demiurgo, que põe em ordem um substrato material. Em outras palavras, uma mistura estranha de platonismo e aristotelismo foi forçada para dentro da filosofia de Anaxágoras, embora, na realidade, isso nada tivesse a ver com qualquer um deles. O exemplo do Pseudo-Plutarco (talvez o próprio Plutarco) é característico: “É impossível postular a matéria como o único e único princípio que dá origem a todos os entes; em vez disso, é necessário introduzir também uma causa poiética”. Em seguida ele usa o exemplo habitual de Aristóteles acerca do artesão que impõe forma à matéria e produz certo objeto.

TZAMALIKOS, Panayiotis. Anaxagoras, Origen, and Neoplatonism: the legacy of Anaxagoras to classical and late antiquity. Berlin: De Gruyter, 2015.