Anaximandro

(Alexandre Costa, 2009, resumo de ensaio)

A Natureza Inaugural e Ontológica da Sentença de Anaximandro

  • A sentença de Anaximandro destaca-se como uma das mais remotas e relevantes manifestações do pensamento ocidental, pois inaugura temas preponderantes dos quais a filosofia jamais pôde desvencilhar-se, estabelecendo-se como um enunciado simultaneamente fundador e definidor que trata, pela primeira vez, da questão do tempo concebido como khronos a partir da imbricação fundamental entre o ser e o devir.
  • A relação antitética e paradoxal entre a permanência do ser e a mutabilidade do devir, tal como proposta pelo milésio, é a instância responsável pela gênese da primeira concepção eminentemente filosófica de tragédia, fundamentada na percepção de que a origem e a corrupção dos entes ocorrem segundo uma necessidade incontornável.

O Apeiron como Princípio Indeterminado e a Alteridade da Linguagem

  • O conceito de arkhe em Anaximandro, embora preserve as noções poéticas de governo, regência e fundamento estrutural, rompe com o significado de origem temporal, visto que o princípio filosófico é desprovido de idade, tempo ou velhice, estabelecendo uma cisão entre a visão mitopoética de um mundo com começo e a perspectiva filosófica de um cosmo incriado.
  • A escolha do termo apeiron como princípio constitui um recurso linguístico negativo que resulta da união de um alfa privativo à ideia de peira e peirar, significando aquilo que é indeterminado, ilimitado e sobre o qual não há experiência sensível, visto que o mundo fenomênico é composto exclusivamente por seres finitos e dotados de bordas.
  • A impossibilidade de nomear o princípio de forma positiva obedece a uma lógica semelhante àquela encontrada nas sagradas escrituras dos antigos hebreus, onde o nome de Jeova não deve ser pronunciado para que a divindade não seja reduzida à condição de ente ou criatura, pois a palavra é uma determinação que impõe limites precisos ao que é essencialmente ilimitado.
  • O apeiron impõe ao homem a vivência da aporia, termo etimologicamente próximo ao princípio anaximândrico, representando o máximo de experiência que o ente pode ter do inexperimentável, como o silêncio e a morte, revelando uma estrutura imanente que não admite porquês, mas apenas a constatação de como a realidade se processa, tal como sugerido por Angelus Silesius ao afirmar que a rosa é sem porquê.

A Tensão Dialética dos Contrários e a Unidade do Cosmos

  • O princípio dos seres pressupõe uma harmonia concebida como a tensão de contrários que perfazem uma totalidade de absoluta interdependência, assemelhando-se à dialética posteriormente discutida por Hegel, mas distinguindo-se desta por não buscar uma síntese que anule a distinção, mantendo a própria tensão permanente como o pilar de sustentação do real.
  • A unidade reside no sensível sem se confundir com um ente particular, operando como uma gramática ou logos que rege o comportamento da existência, ideia que Heidegger corrobora ao observar que o ser se subtrai enquanto se desoculta no ente, sendo o conhecimento o reconhecimento dessa estrutura lógica que permeia todos os fenômenos da linguagem.
  • A realidade é descrita como uma madeira de ferro, uma configuração movida por um contínuo jogo de contradições onde o eixo do ser compreende a unidade e a permanência estática em caso dativo, enquanto o eixo do devir abrange a multiplicidade e o movimento em caso acusativo, sem que tais esferas constituam dicotomias excludentes.

A Necessidade do Devir e a Transitoriedade dos Entes

  • A gênese e a corrupção dos entes ocorrem segundo a necessidade, termo que assume seu teor filosófico de inevitabilidade e incontornabilidade, indicando que o nascimento de um ser é sempre a transformação de algo preexistente e que sua morte decreta necessariamente a origem de outro, em uma ciranda incessante de transformações.
  • A transitoriedade da vida é comparada a um projétil lançado que perde força até a extinção, ou a uma chama de vela que, ao ser apagada, retorna a um domínio de silêncio e não ser que é mudo por inexistir, demonstrando que as perguntas sobre o onde e o de onde do surgimento vital são, no limite, irrespondíveis.
  • O cosmos e a physis permanecem constantes em um palco ingênito e imortal, enquanto apenas os entes particulares estão sujeitos ao nascimento e ao perecimento, de modo que a vida do ente é tempo, mas a vida da própria vida é extemporânea, não sendo o princípio afetado pela temporalidade que submete as suas partes.

O Caráter Trágico da Existência e a Ordem do Tempo

  • O tempo surge como a fagulha resultante do encontro entre ser e devir, existindo para os seres que atuam como peças no tabuleiro, mas não para o jogo em si, de modo que a ordem de khronos determina que a vida, ao desejar manter-se viva, cava sua própria sepultura, realizando o contrário do que deseja.
  • A harmonia dos contrários é ilustrada pela imagem do arco proposta por Heraclito, cujo nome é vida mas cuja obra é morte, revelando que a existência é um único ato de tensão e violência onde Hades e Dioniso são o mesmo, e onde o um depende necessariamente do dois para manifestar seu caráter paradoxal.
  • A liberdade humana é entendida como a liberdade relativa à jaula, onde o indivíduo é convidado a jogar com prazer e arte mesmo sabendo antecipadamente do seu desfecho, como no clássico cinematográfico de Ingmar Bergman onde se joga xadrez com a morte, ou na percepção de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito de que feliz é aquele que sabe sofrer.

O Conhecimento como Auge da Tragédia e a Redenção pela Arte

  • A tragédia da tragédia reside no conhecimento humano, pois o homem é o único animal condenado a saber que sua vitalidade se consome no próprio ato de viver, experimentando o sabor amargo da consciência de que o apeiron é o pai da aporia e de que sabê-lo não altera as regras do jogo.
  • Diante do irremediável, resta ao homem a audácia e a grandeza de assumir a inutilidade do fazer consciente, tal como expresso por Joao Cabral de Melo Neto, preferindo a dificuldade de agir sabendo que o sentido não será pressentido a meramente não fazer nada.
  • A resposta grega ao horror do destino manifesta-se na criação da tragédia teatral e da comédia como formas catárticas de lidar com a impotência, transformando o homem em um ser maior que os deuses através da loucura e do riso, conforme sugerido por Fernando Pessoa ao questionar o que seria o homem sem a sua loucura.
  • A existência é uma travessia marcada pela luta e pelo vigor, onde os seres humanos são as pilhas finitas que mantêm a imortalidade do todo, vivendo a morte dos deuses e morrendo a vida destes, até o momento em que a morte atua como a libertação final do tabuleiro, pois, como afirma Carlos Drummond de Andrade, o espírito é livre na prisão do corpo, mas ser verdadeiramente livre é estar morto.
  • O imperativo de Pindaro para que o homem se torne quem é e a percepção de Batatinha sobre sorrir da tristeza quando não se consegue chorar sintetizam a dignidade da condição humana que, mesmo vencida pela moira, encontra no jogo da vida o seu brilho e a sua única possibilidade de liberdade através da aceitação do paradoxo.

Costa, Alexandre. O caráter trágico da sentença de Anaximandro. ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. 3 nº 6, 2009