Eudoro de Sousa: Física dos Pré-Socráticos

Assinalemos na literatura historiográfica os seguintes pontos: 1) para os antigos, todos os pré-socráticos são físicos, isto é, todos teriam escrito livros «acerca da natureza» (peri physeós); 2) quando Aristóteles afirma que a doutrina física de Tales de certo modo depende dos theológoi, quer dizer, daqueles que filosofaram «tomando a Noite como ponto de partida» (arkhê), é claro que ele aponta para uma filosofia que implica uma teologia (mitologia) ou que ainda está implicada numa teologia; 3) daí resulta que, para os historiadores antigos, a fisiologia dos pré-socráticos também seja teologia, isto é que a doutrina da natureza também fosse uma teoria da divindade; ou ainda, que teria havido uma só doutrina concernente ao mesmo ser, o qual se revelava através do que era, ora como divindade, ora como natureza, ora como natureza-divindade.

E agora vejamos: que podem dizer os modernos dos antigos filósofos da natureza? Em última análise, o que segue. Que a filosofia dos pré-socráticos consistiu principalmente na indagação do Um (tò hèn); que este «Um» não é um entre os muitos (tá pollá), não é o singular de um plural, mas a Lei do Ser (tò ón) dos entes (tôn ontôn). Por isso, nós encontramos sempre nos escritos (tão poucos!) que nos restam dos filósofos da natureza o hén ao lado do ón e os pollá ao lado dos ontá, isto é, o Um ao lado do Ser e o múltiplo ao lado dos entes, e encontramos, quase sempre, os dois, o Um e o Ser, como termos intercambiáveis; tanto vale falar do Um como do Ser, e do Ser como do Um. Depois, dizem-nos também que esse hén ou esse ón, esse «Um» ou esse «Ser» — repetimos — é a lei da physis, isto é, a lei dos pollá e dos ónta, ou seja, a natureza dos muitos e dos entes. Mas physis não significa o mesmo que nossa palavra «Natureza». Physis é lei que governa todas as possíveis ou realizadas configurações da totalidade dos entes; e essa lei, segundo Heráclito, «ama (ou ‘prefere’) ocultar-se» (kryptesthai philei), escusado seria insistir para o como estas palavras do grande sábio de Éfeso condizem com o que acima escrevemos acerca da Fulguração Ofuscante, pois também entre os seus fragmentos se acha aquele «raio que tudo governa». Enfim, dizem-nos os modernos estudiosos que a atividade especulativa dos primeiros filósofos culmina, precisamente, no esforço por desocultar a Natureza que preferia ficar oculta. Desocultar, na natureza ou além dela, o «Um» ou a lei do Ser dos entes ou dos muitos é, pois, a busca da Verdade (alétheia), o provocar de outras fulgurações que iluminem o que de uma vez, porque de olhos ofuscados, não vimos porque ficou oculto; o transmutar a ausência, experimentada como provocação da Realidade, em presença sentida e pensada pelo filósofo.

Em primeiro lugar, a filosofia dos pré-socráticos é esta; em segundo lugar é que vem o esforço por tornar sensível e inteligível a essência do «Um» ou do «Ser» ou da «Natureza», ou antes, do seu princípio. Porém, o Ser, o Um, o princípio da Natureza não é a água, o ar, o fogo, o Indiferenciado, mas sim o Indiferenciado é que seria como o ar, como a água, como o fogo. Pois o Indiferenciado de Anaximandro parece ser o único «abstrato» a que convém as formas «concretas», pelo menos, a do seu antecessor e a do seu sucessor.

Tal é, por conseguinte, a fisiologia que está entre a física que mitologia foi e a física que na filosofia haverá. O ser-um das muitas coisas que aparecem — eis o que ela descobriu, a natureza que desocultou, a physis que verificou. Para que a descobrisse ou desocultasse, era necessário, evidentemente, que a natureza se tivesse encoberto ou ocultado. Seria a natureza manifesta na mitologia? E, se o era, que teria acontecido para que ela se tornasse oculta? Por outras palavras, que sobreveio à natureza, que a escondeu?

Mas poderemos nós estarmos certos de que essa natureza que se revelava na mitologia, era a mesma natureza que se ocultara perante o olhar do primeiro filósofo? Não seria já esta physis, outra natureza? Em verdade, se é certo que uma atitude teórica desenha os contornos do próprio mundo em que surge, certo deverá ser também que a physis dos pré-socráticos substituiu a outra, no mesmo instante em que eles se propuseram descobrir a sua.

Estabeleçamos como tese, por improvável que pareça, que a physis dos pré-socráticos nasceu subitamente como que do «interiorizar-se», do «recolher-se», do «encerrar-se» de uma natureza que, antes, não tinha dentro nem fora. Mas, ainda assim, do recolher-se a quê e em quê?, perguntar-se-ia. Pergunta à qual não vemos outra resposta, senão esta: a physis nasce do recolher-se em si mesmo, aquilo que nós temos de designar por «natureza», à falta de outra palavra que signifique um mundo sem intimidade — entenda-se, um mundo sem aquela intimidade humana, que poetas de todos os tempos sempre se comprazem em atribuir-lhe (com a notável excepção de Alberto Caeiro; o que lhe permitiu dizer que, por isso mesmo, teria sido ele «o único poeta da natureza»). Ora, para que alguma coisa se recolha a si e se encerre em si, necessário será que, além dela, outra haja. Donde concluímos, sem demora, que a physis dos pré-socráticos nasceu da natureza mítica, no momento em que esta se recolheu perante outro ser, de cujo exteriorizar-se resultou, precisamente, a interiorização da natureza. Noutros termos, a natureza não teve dentro nem fora, até o dia em que alguma de suas partes, algum de seus membros, separando-se dela, ficou de fora.

Escusaríamos de dizer qual das partes se separou. A aurora da Humanidade é o crepúsculo da Naturidade. A natureza interiorizou-se, recolheu-se, encerrou-se nos limites que o Homem estabeleceu pelo próprio surgir nela ou diante dela. A physis é a natureza recolhida perante o Homem.

Somente, repare-se: na época dos pré-socráticos, mal começara o processo de hominização (não nos referimos, evidentemente, ao processo paleontológico), isto é, da «involução» da natureza, que instituiu a physis. Nesse momento, a natureza ainda era divina, ou povoada de deuses, com suas epifanias vegetais, animais e humanas (e até siderais) — talvez, por isso Schelling dera a entender que não seria possível instaurar uma filosofia da mitologia sem uma concomitante filosofia da natureza — ou, pelo menos, não ousavam, os homens, destituí-la de um theíon periékhon, de um «circundante divino», para usar os termos que talvez já fossem os de Anaximandro. Se o processo se detivesse aí, nunca haveria chegado o instante em que lhe atribuíram a invenção dos deuses (sofistas), nem após terem sido um elemento privilegiado da natureza, aspirariam ao poder tirânico que acabaram por exercer sobre ela e contra ela. Para que a natureza, interiorizando-se, viesse a tornar-se em physis, bastava que os homens só fossem primi inter pares, os mais nobres, entre todos os seres naturais; essa dignidade sua, não despotenciava a natureza, com seus deuses do céu e do inferno, não a aniquilava. É curioso lembrar que Aristóteles, cuja filosofia não ignora os homens, mas, ao que parece, ainda nada sabe acerca do Advento do Homem, crê inabalavelmente na eternidade do Mundo. (Eudoro de Sousa, “Sempre o Mesmo acerca do Mesmo”)

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