Primórdios da Religião Grega

Se a religião grega, considerada em si mesma, ou recolocada em sua ambiência mediterrânea, tem uma história, essa parece situar-se entre uma Fulgurância que desvela o mundo, todo ele, ou o que ele contém de mais valioso, como proveniente e resultante de um deicídio primordial, cuja projeção antropológica se encontraria no regime de vida dos primitivos agricultores de tuberosas (depois, ou simultaneamente, nos de cereais), e outra que revelaria a existência de um mundo que, fenomenologicamente examinado, decerto não é o mesmo, pois, começando pela proposição de um «Senhor dos Animais», com os atributos de uma paternidade indiscutivelmente autocrática e uma figuração que, por vezes, sugere que ele não anda longe de se identificar com o Sol, teria por projeção antropológica o regime de vida dos «caçadores primitivos». Verdadeiramente miraculoso, ou se nem tanto assim, admirável acima de tudo quanto possamos e devamos admirar, é que no sacrifício cruento aos deuses olímpicos se encontrem tantos vestígios da religiosidade fundante deste mundo longínquo e ultrapassado (por exemplo, nas festividades conhecidas por wes:Bufonías|Bufônias – palavra que contém os significantes de «boi» e «matança») que, reunidos, não permitem que os atribuamos ao acaso (K. Meuli), e que outros tantos vestígios se mantenham, com os traços característicos das chamadas «religiões agrárias» (dispensamo-nos de enumerar exemplos, para unicamente chamar a atenção, ou simplesmente lembrar, que, neste ponto se centraliza o horizonte que abraça todos os cultos «misteriosos»). É claro; não é absurdo pensar que cada uma destas Fulgurações ofuscasse os olhos dos Gregos, não lhes permitindo dar-se conta do desvelamento produzido pela outra, de modo que não chega a surpreender-nos o fato, já entrevisto, de que eles mal se apercebessem das contradições inerentes àquela sua religiosidade descrita pela história. E, no entanto, a maior dessas contradições, ou o aspecto mais saliente de todas elas, reside na oposição aparentemente insolúvel, da imanência e da transcendência. Só que já não nos parece de todo legítimo pôr toda a imanência do lado em que, na Grécia, se desenvolveu a cosmobiologia (o núcleo mais primitivo das chamadas religiões «agrárias») dos plantadores, e toda a transcendência no lado oposto, isto é, na interpretatio graeca do término da evolução, ou da série de metamorfoses sofridas pela imagem daquele «Senhor dos Animais», que fascinara os caçadores primitivos.

Embora, nesta última, mais facilmente se insinuasse a concepção de uma transcendência teística, não podemos recusar-nos a admitir certo pendor para a mesma transcendentização quanto à divindade que, assassinada, se transforma em plantas úteis (por exemplo, Perséfone identificada a Hainuwele) ou no todo que é o mundo (por exemplo, a divisão do cadáver de wpt:Tiamat, morta por wpt:Marduk). Propomos uma hipótese de trabalho: cedendo a semelhante propensão é que teria nascido o politeísmo, e não só o dos Gregos! Se assim não fosse, como se entenderia que ao lado dos deuses que, uma vez assassinados, se transformam (ao que parece, definitivamente) no mundo ou em algum ou alguns entes intra-mundanos, persistissem as imagens desses mesmos deuses, como testemunhas da perenidade de uma existência que, propriamente, já não seria a deles ou, pelo menos, a que só o era antes do princípio. A imagem perpetua o «transformado», junto do resultado definitivo ou intermitente, da transformação. Os «ídolos», no étimo sentido da palavra, ou as epifanias antropomórficas, que só mudam superficialmente ao sabor do que possa chamar-se «evolução da plástica», constituem-se como o sinal negativo da imanência. E o mesmo se diga dos deuses que morrem e ressuscitam, pois a ressurreição do deus ou da deusa assassinada contradiz frontalmente a continuidade biológica das epifanias teriomórficas, fitomórficas ou cosmomórficas, na medida que mantém contraditoriamente (ao mito que se poderia dizer «originário») homeomórficas. Tudo isto se dá, tanto na Grécia, quanto em sua ambiência mediterrânea. (Eudoro de Sousa, “Sempre o Mesmo acerca do Mesmo”)

,