FICINO (TP:18.8.4) – COMO A INTELIGÊNCIA É UNIDA A DEUS

Não é por sua própria potência que a inteligência é levada a revestir a substância divina como uma forma. É a ação divina que a atrai. Uma natureza inferior, de fato, só pode adquirir pela ação de uma natureza superior a propriedade e a forma dessa natureza superior. Isso é manifesto nos elementos: o ar só se torna fogo pela ação do fogo. Além disso, nada pode em caso algum ser conduzido a uma ação mais excelente, sem que previamente sua potência tenha sido aumentada. Se a espécie de ação à qual é conduzida lhe é normal, ainda que por vezes mais violenta, bastará certamente que sua potência normal seja aumentada, como bastará ao ar que naturalmente dispensa um calor de um grau e que em dado momento deve dispensar um calor de dois graus, que a qualidade de seu calor natural seja um pouco aumentada. Todavia, se o ar pretendesse poder fazer uma ação superior em gênero e em espécie, por exemplo, se quisesse iluminar, o que é próprio de um corpo etéreo, seria necessário que previamente uma nova forma lhe fosse atribuída pelo próprio éter.

Por que todas essas considerações? Para que compreendamos que a inteligência não pode, por si mesma, elevar-se à contemplação da substância divina pelo simples aumento de sua potência e de sua luz naturais, porque há mais que uma diferença de gênero entre essa operação e a operação natural da inteligência, e ela precisa de uma nova potência e de uma nova luz, descendentes de um princípio superior. É o que se chama a luz da graça e da glória, graças à qual a inteligência, iluminada e mais intensamente aquecida, é envolvida pela substância divina, cujo calor a abrasa como uma chama. Chama, digo, que embora pareça absolutamente idêntica, não tem nada comparável àquela produzida pelo vapor seco que se eleva da terra e chega no cometa ao vizinho da esfera do fogo, mas a uma chama supra-celeste, cujo brilho é salutar e não queima.

Talvez se diga que nenhuma luz pode levar a inteligência à visão de Deus, porque, se não há proporção entre a visão em si e o som, não é surpreendente que não haja proporção nem entre a inteligência, nem entre a luz recebida pela inteligência, logo finita, e Deus que é incomensurável. Responderemos que embora ultrapassando a potência do intelecto, Deus não é no entanto estranho ao intelecto da mesma maneira que o som o é à visão ou uma substância imaterial ao sentido, pois Deus, segundo os teólogos cristãos, é o primeiro objeto inteligível, o princípio, o meio e o fim de toda potência e de toda ação intelectuais. Há portanto certa proporção entre o intelecto e Deus, não que haja entre eles qualquer medida comum, mas antes uma relação análoga à daquilo que se poderia chamar a matéria intelectual em relação à forma inteligível e do efeito à causa.

Além disso, embora essa luz infusa se torne limitada na inteligência, não deixa de ser infusa por Deus, dotada de tal potência que une a inteligência à substância divina, evidentemente não por um vínculo natural, mas antes por um vínculo intelectual. Ora, essa união, o raio natural não pode realizá-la, porque desde o começo passou todo ele na natureza do sujeito que o recebe, natureza por si mesma anteriormente informe, o que torna esse raio mesmo obscuro e deficiente. Por outro lado, a inteligência estando muito abaixo da simplicidade divina, não pode pela mesma razão obter por esse raio natural toda a perfeição e é por isso que nela outra coisa é o raio natural, graças ao qual compreende algo na medida em que convém a sua espécie, e outra coisa é a luz infusa pelo favor divino que, elevando-a acima de si a um grau além do qual não se pode conceber, a eleva de maneira admirável.

Finalmente, a própria infinidade de Deus não significa privação de forma, como é o caso da infinidade que convém à matéria que, porque é ineficaz e informe, é considerada com razão como inapta ao conhecimento; indica, ao contrário, a excelência absoluta, que não é realmente restringida por nenhum sujeito. À semelhança do sol, essa excelência é tal que, brilhando e iluminando de maneira admirável, pode melhor que qualquer outra promover a visão intelectual de todas as coisas e ser vista, e na medida em que ultrapassa a inteligência, pode elevá-la acima de suas próprias forças. No entanto, não se deve crer que a inteligência, formada pela essência divina, ainda que compreendendo o que é, apreenda completamente essa essência, pois de um lado sua própria potência é limitada, de outro a luz que está nela é restrita e enfim como vem depois da essência divina, não é por isso formada pela potência toda da divindade. Então? Será que apreende uma parte da substância divina, enquanto a outra lhe está oculta? Não, verdadeiramente não se pode dizer isso, pois Deus não pode ser dividido. É preciso ao contrário pensar que ela vê Deus, sem no entanto compreendê-lo totalmente, isto é, que percebe Deus com menos razões, menor certeza e menor perfeição que Deus se vê a si mesmo.

Além disso, na visão de Deus a inteligência não pode ver tudo o que Deus vê e pode. Ora, Deus vê e pode uma infinidade de coisas fora do que existe na natureza. Provamos isso em outro lugar. De fato, se ela não compreende a substância de Deus, certamente não compreende sua inteligência e sua potência, nem por consequência o que Deus compreende e pode, caso contrário, já que se julga ordinariamente da intensidade de uma potência pelo que ela pode, se compreendesse plenamente tudo o que ele vê e tudo o que ele pode, apreenderia igualmente sua potência de ver e de agir, assim como sua substância. Em suma, mais um intelecto é elevado, mais seu conhecimento tem de extensão, seja pelo número de objetos conhecidos, seja por suas razões de ser. É portanto lógico que a inteligência divina, que se contempla a si mesma em tudo, veja mais coisas e sob mais razões que qualquer outro intelecto.