Rocha Pereira
Excertos da Introdução de Maria Helena da Rocha Pereira, à sua tradução da “República”
Seria o Livro I independente a princípio, e só mais tarde retocado para servir de proémio à República?
Justamente a palavra «proémio» aparece na primeira frase do Livro II, para classificar a conversa anterior. Esta forma um conjunto ordenado e completo, comparável aos chamados diálogos aporéticos, que se atribuem à primeira fase da obra do filósofo, e cujo esquema é fundamentalmente o mesmo: propõe-se uma definição de uma virtude, que vai sendo substituída por outras, à medida que Sócrates demonstra a sua insuficiência; de modo que, quando termina a discussão, a conclusão é negativa. Assim, o Lísis falha em definir a amizade, o Cármides a temperança (sophrosyne), o Laques a coragem, o Êutifron a piedade. A coragem, a temperança, a piedade formavam com a justiça o grupo das virtudes cardiais, já esboçado desde Ésquilo e Píndaro, pelo menos1. Ora, definir a justiça é o que tenta fazer, sem o conseguir, o Livro I da República. Seria esse o livro que faltava, para completar o conjunto, pois não era de supor que Platão, que, durante o período dos diálogos aporéticos, investigou todas as outras virtudes, omitisse esta. O argumento é de um dos melhores especialistas, Paul Friedländer, e de uma obra recente, a última que escreveu2. Mas desde 1891 que Dümmler3 havia notado as relações deste livro com os primeiros diálogos e o denominou Trasímaco, do nome do Sofista que é o principal interlocutor de Sócrates4. A hipótese de Dümmler continua a ter defensores, salvo quanto à suposição, que também formulou, de o livro se completar originàriamente com o mito terminal da obra — o que inutilizaria o argumento da antiguidade baseada no final apor ético5. Aceita-a como provável um dos mais recentes e mais autorizados ensaios sobre a República6. De qualquer modo, as diferenças de estilo7 e de vocabulário em relação ao resto da obra são suficientes para levar os partidários da tese unitária a analisar a estrutura do «pretenso Trasímaco» junto com a dós primeiros diálogos8. Mas temos de reconhecer que o Livro I desempenha admiràvelmente as funções de pórtico de um tão extenso tratado e que as potencialidades de dramaturgo, aqui tão exuberantemente reveladas, não o afastam das outras três obras-primas que, como já referimos, é costume considerar como compostas no mesmo período: o Banquete, o Fédon e o Fedro9.
Em qualquer caso, o Livro I corresponde a uma parte da obra que, além de ter a finalidade de apresentar as figuras e situar a discussão, fornece o tema da mesma — o que é a justiça — e refuta as definições propostas, a de Céfalo («dizer a verdade e restituir o que se tomou» — 331b), a de Polemarco («dar a cada um o que se lhe deve», segundo Simónides — 331e) e a de Trasímaco («o que está no interesse do mais forte» — 338c).
Francis Wolff
- Preâmbulo (L1): Crítica das ideias admitidas sobre a justiça
- Introdução: Sócrates e Céfalo
- Sócrates na festa de Bendidios
- Conversação com o velho Cefalo sobre os incômodos da velhice
- O bem supremo que busca a fortuna é de não ser tentado a ser desonesto
Mas (primeira opinião sobre ajustiça, Céfalo): a justiça consiste em “dizer a verdade e pagar suas dívidas”?
A) Crítica das definições correntes da justiça (331e-336a)
- Primeira definição (Simonide, por generalização daquela de Cefalo): “dar a cada um aquilo que a ele se deve”Segunda definição (aditamento à precedente): “fazer o bem a seus amigos e o mal a seus inimigos”
- Primeira crítica (analogia justiça/arte): todas as técnicas são mais úteis que a justiça
- Segunda crítica (analogia justiça/arte): o homem que sabe ser justo sabe também ser o mais injusto
- Terceira crítica: quem são os verdadeiros amigos e os verdadeiros inimigos?
Terceira definição: fazer o bem ao amigo e o mal ao inimigo mau
B) Discussão da tese de Thrasymaco: Thrasymaco intervém, revoltado contra o método seguido (336b)
- 1. Exposição e crítica da tese sofística: a justiça é o interesse do mais forte (336b-347e)
- Exposição da tese
- Primeira tentativa de refutação
- Aquilo que os fortes instituem nem sempre é para eles vantajoso
- Réplica: o forte só é forte enquanto não se engana sobre sua vantagem
- Segunda tentativa de refutação
- Toda técnica é feita para vantagem daquilo que sobre o qual ela se exercita e que ela domina
- Réplica
- Toda técnica busca a vantagem daquele que a exercita e redesenvolvimento da tese
- A injustiça é mais forte e mais livre que a justiça
- Terceira refutação
- 2. A injustiça é mais lucrativa que a justiça? (347e-354c)
- Thrasymaco classifica a injustiça junto com a virtude e a sabedoria
- Primeira refutação
- A justiça é mais bela que a injustiça
- O justo a conduz sobre seu contrário apenas, ele portanto sábio e bom.
- Intermezzo.
- Segunda refutação
- A justiça é mais forte
- A injustiça impede os homens de agir em concerto
- Terceira refutação
- Conclusão
- Sócrates na festa de Bendidios
- Introdução: Sócrates e Céfalo
Eggers Lan
LIBRO I
328c Discusión preliminar sobre la vejez
Céfalo: el carácter, no la vejez, es la causa de los males de que se quejan los ancianos; la riqueza puede ayudar al hombre sensato a ser justo.
331c Céfalo: la justicia es la devolución de lo que se debe
Sócrates: pero se puede devolver lo que se debe con justicia o no.
332d Polemarco: es el beneficio a amigos y perjuicio a enemigos
Sócrates: pero si se perjudica a un caballo; se le vuelve peor respecto de su excelencia (areté); dado que la justicia es la excelencia del hombre, al perjudicar a un hombre se lo vuelve más injusto, y así se haría justicia produciendo injusticia.
338c Trasímaco: es lo que conviene al más fuerte
Sócrates: pero así como un médico dispone no lo que le conviene a él sino lo que conviene al enfermo, el gobernante debe disponer lo que conviene a los gobernados. Cada arte aporta un beneficio particular: el del médico, la salud, el del mercenario el salario. Si el médico gana dinero al curar, no se beneficia con el arte médico sino con el arte del mercenario que añade al suyo. Así el que gobierna no obtiene ningún beneficio de su arte, sino de uno adicional.
348c Trasímaco: la injusticia es excelencia y sabiduría
Sócrates: pero en cualquier arte el sabio no trata de aventajar a otro que lo conoce, sino al que lo desconoce. Y el justo no quiere aventajar al justo, sino al no-justo. Por lo tanto es el justo quien se parece al sabio y bueno, no el injusto.
352d La justicia es la excelencia del alma
Cada cosa tiene una función (érgon) que sólo ella cumple o que ella es la que la cumple mejor. Las funciones del alma son atender, deliberar, etc., y su excelencia es la justicia, de modo que el alma justa cumplirá su función y vivirá bien, no así el alma injusta.
Jowett
The Republic opens with a truly Greek scene—a festival in honour of the goddess Bendis which is held in the Piraeus; to this is added the promise of an equestrian torch-race in the evening. The whole work is supposed to be recited by Socrates on the day after the festival to a small party, consisting of Critias, Timaeus, Hermocrates, and another; this we learn from the first words of the Timaeus.
Republic I.
When the rhetorical advantage of reciting the Dialogue has been gained, the attention is not distracted by any reference to the audience; nor is the reader further reminded of the extraordinary length of the narrative. Of the numerous company, three only take any serious part in the discussion; nor are we informed whether in the evening they went to the torch-race, or talked, as in the Symposium, through the night. The manner in which the Jowett1892: 327conversation has arisen is described as follows:—Socrates and his companion Glaucon are about to leave the festival when they are detained by a message from Polemarchus, who speedily appears accompanied by Adeimantus, the brother of Glaucon, and with playful violence compels them to remain, promising them not only Jowett1892: 328the torch-race, but the pleasure of conversation with the young, which to Socrates is a far greater attraction. They return to the house of Cephalus, Polemarchus’ father, now in extreme old age, who is found sitting upon a cushioned seat crowned for a sacrifice. ‘You should come to me oftener, Socrates, for I am too old to go to you; and at my time of life, having lost other pleasures, I care the more for conversation.’ Socrates asks him what he thinks of Jowett1892: 329age, to which the old man replies, that the sorrows and discontents of age are to be attributed to the tempers of men, and that age is a time of peace in which the tyranny of the passions is no longer felt. Yes, replies Socrates, but the world will say, Cephalus, that you are happy in old age because you are rich. ‘And there is something in what they say, Socrates, but not so much as they Jowett1892: 330imagine—as Themistocles replied to the Seriphian, “Neither you, if you had been an Athenian, nor I, if I had been a Scriphian, would ever have been famous,” I might in like manner reply to you, Neither a good poor man can be happy in age, nor yet a bad rich man.’ Socrates remarks that Cephalus appears not to care about riches, a quality which he ascribes to his having inherited, not acquired them, and would like to know what he considers to be the chief advantage of them. Cephalus answers that when you are old the belief in the world below grows upon you, and Jowett1892: 331then to have done justice and never to have been compelled to do injustice through poverty, and never to have deceived any one, are felt to be unspeakable blessings. Socrates, who is evidently preparing for an argument, next asks, What is the meaning of the word justice? To tell the truth and pay your debts? No more than this? Or must we admit exceptions? Ought I, for example, to put back into the hands of my friend, who has gone mad, the sword which I borrowed of him when he was in his right mind? ‘There must be exceptions.’ ‘And yet,’ says Polemarchus, ‘the definition which has been given has the authority of Simonides.’ Here Cephalus retires to look after the sacrifices, and bequeaths, as Socrates facetiously remarks, the possession of the argument to his heir, Polemarchus. . . . . .
Introduction.
The description of old age is finished, and Plato, as his manner is, has touched the key-note of the whole work in asking for the definition of justice, first suggesting the question which Glaucon afterwards pursues respecting external goods, and preparing for the concluding mythus of the world below in the slight allusion of Cephalus. The portrait of the just man is a natural frontispiece or introduction to the long discourse which follows, and may perhaps imply that in all our perplexity about the nature of justice, there is no difficulty in discerning ‘who is a just man.’ The first explanation has been supported by a saying of Simonides; and now Socrates has a mind to show that the resolution of justice into two unconnected precepts, which have no common principle, fails to satisfy the demands of dialectic.
Analysis.
Jowett1892: 332. . . . . He proceeds: What did Simonides mean by this saying of his? Did he mean that I was to give back arms to a madman? ‘No, not in that case, not if the parties are friends, and evil would result. He meant that you were to do what was proper, good to friends and harm to enemies.’ Every act does something to somebody; and following this analogy, Socrates asks, What is this due and proper thing which justice does, and to whom? He is answered that justice does good to friends and harm to enemies. But in what way good or harm? ‘In making alliances with the one, and going to war with the other.’ Then in time of peace what is the Jowett1892: 333good of justice? The answer is that justice is of use in contracts, and contracts are money partnerships. Yes; but how in such partnerships is the just man of more use than any other man? ‘When you want to have money safely kept and not used.’ Then justice will be useful when money is useless. And there is another difficulty: justice, like the art of war or any other art, must be of Jowett1892: 334opposites, good at attack as well as at defence, at stealing as well as at guarding. But then justice is a thief, though a hero notwithstanding, like Autolycus, the Homeric hero, who was ‘excellent above all men in theft and perjury’—to such a pass have you and Homer and Simonides brought us; though I do not forget that the thieving must be for the good of friends and the harm of enemies. And still there arises another question: Are friends to be interpreted Jowett1892: 335as real or seeming; enemies as real or seeming? And are our friends to be only the good, and our enemies to be the evil? The answer is, that we must do good to our seeming and real good friends, and evil to our seeming and real evil enemies—good to the good, evil to the evil. But ought we to render evil for evil at all, when to do so will only make men more evil? Can justice produce injustice any more than the art of horsemanship can make bad horsemen, or heat produce cold? The final conclusion is, that no sage or poet ever said that the just return evil for evil; this was a maxim of some rich and mighty man, Periander, Jowett1892: 336Perdiccas, or Ismenias the Theban (about b.c. 398-381). . . . .
Luc Brisson
Le livre I, qui se présente à bien des égards comme un dialogue séparé, porte sur les conceptions traditionnelles de la justice. On se trouve alors non pas à Athènes, mais au Pirée, le port de la cité, dans la maison de Céphale, riche métèque d’origine syracusaine, fabricant d’armes et père de Lysias, l’orateur dont Phèdre est l’élève. La discussion s’engage entre Socrate et Céphale pour qui la justice consiste à dire la vérité et à rendre ce qu’on a reçu. Socrate montre rapidement les contradictions dans lesquelles s’empêtre cette définition sommaire. Puis intervient Polémarque, un autre fils de Céphale. La discussion s’achève sur une série de difficultés qui exaspèrent le rhéteur Thrasymaque, lequel propose cette définition : « La justice est l’intérêt du plus fort. » S’engage alors un débat tumultueux qui se termine brutalement, car Thrasymaque est excédé par la thèse de Socrate, suivant laquelle le juste est toujours préférable à l’injuste.
Respectivamente, viii.a Ode Istmica 24-253 e Os Sete contra Tebas 610. Vide infra, n. 16 ao Livro IV. ↩
Plato, 3, p. 63, onde retoma o que dissera no volume anterior (Plato, 2, p. 50), ao estudar o Livro I entre os diálogos do primeiro período (pp. 50-66). Note-se que, nesse mesmo vol. 2, p. 50, Friedländer tomou como base a sistematização de virtudes do Protágoras, que abrange, além daquelas quatro, a sabedoria (sophia), que, em seu entender, não poderia servir de tema para um diálogo aporético no primeiro período de Platão. A pergunta ficaria para o Teeteto… ↩
«Zur Komposition des platonischen Staates», Kleine Schriften, 1, 7, pp. 229 seqq. Dümmler teve, aliás, precursores, como Schleiermacher e sobretudo Hermann, conforme observa P. Friedländer, Plato, 2, p. 305, n. 1. ↩
Assim se criaria um paralelo com os outros grandes Sofistas, que dão, cada um, o título a um diálogo (Protágoras, Górgias, Hípias — este, com dois, o «Maior» e o «Menor»-, Crítias). A hipótese teria certo poder convincente, se existisse também um Pródico — tanto mais que Sócrates se declara discípulo ou ouvinte deste último (Ménon 96d) e o denomina seu companheiro (Hípias Maior 282c). Cf. ainda Teeteto 151b. Note-se também que no Protágoras estão presentes tantos desses mestres que E. R. Dodds pôde falar ironicamente de um «Congresso de Sofistas» nesse diálogo (na sua edição do Górgias, Oxford, 1959, p. 7). ↩
A história do debate, que nalguns casos se alarga à teoria de que o Livro 1 retrata o Sócrates real, foi feita por G. Giannantoni, «II primo libro della Reppubblica di Platone», Rivista Critica di Storia della Filosofia 12 (1957), 125-145 (citado por H. Cherniss, no vol. 4 (1959) de Eustrum, pp. 33-34 e 162). ↩
R. C. Cross and A. D. Woozley, Plato’s Republic. A. Philosophical Commentary, p. 42. ↩
Inclusivamente o tratamento das figuras, que, como já notou Wilamowitz (Platon, Berlin, 1929, p. 445), se esfumam progressivamente, a partir do Livro II. ↩
Assim faz, e. g., V. Goldschmidt, Les Dialogues de Platon, que o estuda entre os aporéticos. O mesmo autor chama a atenção (p. 135) para uma diferença subtil: os diálogos daquele tipo terminam por uma nota de esperança, apesar de não se ter conseguido a definição. Mas, neste, «a aporia final não é definitiva. Isso não o disse Sócrates. É Gláucon que o diz por ele. Significando assim que o diálogo precedente não forma senão um prelúdio, o «primeiro» livro da República». D. J. Allan (Plato: Republic Book 1, p. viii) notara também uma particularidade: nenhum dos diálogos mais antigos era tão negativo como este, se tomado isoladamente. Este mesmo especialista apresenta um argumento de economia dramática que não pode menosprezar-se: o silêncio, durante a discussão, dos irmãos de Platão (salvo em 347a), certamente porque os aguardava um papel maior (pp. vii-viii). ↩
P. Shorey, What Plato Said, conclui negativamente: «É impossível provar que o Livro I se destinava a ser publicado separadamente. A reconstituição feita por Dümmler de um Trasímaco anterior em data ao Górgias permanece, simplesmente, uma engenhosa conjectura» (pp. 214-215). A. Diès, na introdução à edição Budé da República, vai mais longe ainda na destruição do paralelo, ao notar que, se o Górgias acabasse com a discussão entre Sócrates e Polo, ninguém suspeitaria que o diálogo tinha uma segunda parte (p. xix).
[Entre os comentadores mais recentes, pensa do mesmo modo N. P. White, A Companion to Plato’s Republic, pp. 61 e 69, que entende não ser possível que este livro tivesse sido escrito como um diálogo separado, pois contém muitas indicações e conceitos que reaparecerão nos outros. Porém Julia Annas, An Introduction to Plato’s Republic, aceita como provável a hipótese, com base na comparação com o Clitofonte (que considera autêntico); não lhe parece, contudo, relevante para a interpretação global da obra, uma vez que “forma uma introdução perfeitamente adequada à discussão principal” (p. 17).] ↩