Rocha Pereira
Excertos da Introdução de Maria Helena da Rocha Pereira, à sua tradução da “República”
Homens algemados de pernas e pescoços desde a infância, numa caverna, e voltados contra a abertura da mesma, por onde entra a luz de uma fogueira acesa no exterior, não conhecem da realidade senão as sombras das figuras que passam, projetadas na parede, e os ecos das suas vozes. Se um dia soltassem um desses prisioneiros e o obrigassem a voltar-se e olhar para a luz, esses movimentos ser-lhe-iam penosos, e não saberia reconhecer os objetos. Mas se o fizessem vir para fora, subir a ladeira e olhar para as coisas até vencer o deslumbramento, acabaria por conhecer tudo perfeitamente e por desprezar o saber que se possuía na caverna. Se voltasse para junto dos antigos companheiros, seria por eles troçado, como um visionário; e quem tentasse tirá-los daquela escravidão arriscar-se-ia mesmo a que o matassem.
Antes de iniciar a alegoria, no começo do Livro VII, Platão dissera expressamente que se tratava de dar a conhecer o comportamento da natureza humana, conforme ela é ou não submetida à educação (VII 514a). Ora, o modo como esta há-de processar-se constitui o tema central do Livro.
Deve notar-se em primeiro lugar que o curriculum que se propõe visa «a disciplina mental e o desenvolvimento do poder de pensamento abstrato»1. Por isso, temos em sucessão os vários ramos então conhecidos2 da matemática (incluindo um acabado de criar, e ainda sem nome, a futura estereometria), desligados, como sublinha o próprio texto, das suas aplicações práticas (VII 525b-d), Temos, assim, como base, a aritmética que «facilita a passagem da própria alma da mutabilidade à verdade e à essência» (VII. 525c); a seguir, o espaço a duas dimensões, ou geometria plana; em terceiro lugar, o espaço a três dimensões, por meio da estereometria; a astronomia estuda os corpos sólidos em movimento; e a harmonia, o som que eles então produzem. Trata-se, portanto, de um ensino essencialmente formativo. Todas estas ciências têm por missão preparar o espírito para atingir o plano mais elevado: a dialéctica, cujo fim é o conhecimento do Bem (VII. 533b-e). Para o seu aprendizado, selecionaram-se os mais bem dotados, quando atingem a idade de trinta anos (VII. 537d), como anteriormente tinham sido escolhidos, aos vinte anos, os que haviam de encetar uma educação superior (VII. 537b-c).
Eis o modo como Platão a define:
O método da dialéctica é o único que procede, por meio da destruição das hipóteses, a caminho do autêntico princípio, a fim de tomar seguros os sem resultados, e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espécie de todo bárbaro em que está atolada e eleva-os às alturas, utilizando como auxiliares para ajudar a conduzi-los as artes que analisamos. (VII, 533c-d)
E, para nos tirar quaisquer dúvidas sobre a relação entre esta ordenação dos estudos e os quatro graus de entendimento anteriormente referidos, explica de novo:
Bastará pois que, como anteriormente, chamemos ciência à primeira divisão, entendimento à segunda, fé à terceira, e suposição à quarta, e opinião às duas últimas, inteligência às duas primeiras, sendo a opinião relativa à mutabilidade, e a inteligência à essência. (VII. 533e-534a)
É próprio do saber dialéctico «apreender a essência de cada coisa» (VII. 534b). Deve ser capaz de distinguir a natureza essencial do Bem, isolando-o de todas as outras ideias (VII. 534c).
Demoramos um pouco na noção de dialéctica, porque ê uma das várias palavras-chave3 deste diálogo, que mudaram de tal modo de sentido, que o seu emprego sem advertência prévia pode induzir em erro4. Derivada de dialegesthai («falar com», «discorrer», «raciocinar»5), pressupõe interlocutores – exatamente como ocorre no modo de filosofar da obra platônica, designada, aliás, por uma palavra da mesma família: «diálogo». Por esse motivo, Nettleship pôde escrever: «O termo «dialéctica», que desempenha um papel quase tão proeminente na filosofia platônica como «forma», não significa originariamente nada mais do que o processo de discussão oral por meio de pergunta e resposta»6. E ainda: «…a palavra passou do simples significado de «discorrer» para o de «discorrer com o fim de atingir a verdade», e este «discorrer» pode executar-se através de palavras entre duas pessoas ou ser ‘o diálogo silenciosamente conduzido pela alma consigo mesma’ (Sofista 263e)»7. Da designação do método (he dialektike methodos VII. 533c), passa a identificar-se com o próprio objeto a alcançar por essa via, que é o saber filosófico.
Francis Wolff
4 O essencial: a educação a dar aos governantes (VI 502c – VII)
- Nota: Toda esta parte é consagrada à educação superior que devem receber os governantes (entre 20 e 35 anos) depois de sua formação inicial descrita acima
Lembrança da seleção operada e da educação já recebida
a) O objetivo a alcançar: o Bem
- O objetivo supremo da educação dos guardiões é de conduzi-los a conhecer o Bem; rejeição da concepção popular do Bem como prazer mais dificuldade a defini-lo.
É preciso proceder por imagens
- Primeira imagem: o Bem é no mundo inteligível o que o Sol é no mundo visível
Segunda imagem: A seção da linha: os quatro objetos e os modos de conhecimento que a aí se relacionam
Terceira imagem: A alegoria da caverna (VII, 514a-518b)
- Representação de nossa natureza se ela não é esclarecida pela educação
- a situação inicial na Caverna
- a formação (impedimento da liberação) e suas etapas até a visão do sol
- a redescida na caverna
- Interpretação da imagem (Caverna = mundo visível; fogo = sol)
O objetivo da educação é de voltar o olho da alma para a ideia do Bem
É preciso voltar as boas naturezas em direção deste objetivo e força-las em seguida a “redescer” para governar os outros
- Representação de nossa natureza se ela não é esclarecida pela educação
- Primeira imagem: o Bem é no mundo inteligível o que o Sol é no mundo visível
b) Os meios da educação: as cinco ciências propedêuticas
- Insuficiência da formação recebida (ginástica e música) e das artes para alcançar o objetivo
Primeira ciência necessária, a ciência dos números, a aritmética, “ciência geral, que serve a todas as artes, a todas as ciências e a todas as operações intelectuais”
- distinção entre os objetos que incitam à reflexão – aqueles que produzem a contradição – e aqueles que não a incitam
distinção entre dois usos da aritmética
- propedêutico à intelecção
- puramente utilitário
Segunda ciência necessária, a geometria plana, ciência das figuras
- distinção entre uso ordinário da geometria e seu uso propedêutico ao conhecimento
Terceira ciência, a esteriometria, ciência dos sólidos, ainda incoativa
Quarta ciência, a astronomia e seu verdadeiro método
Quinta ciência, a harmonia e seu verdadeiro método
- distinção entre os objetos que incitam à reflexão – aqueles que produzem a contradição – e aqueles que não a incitam
O termo da educação: a dialética
- A meta final é a dialética, que tem por objeto o conhecimento da essência de cada ser e por termo o conhecimento do Bem
A seleção dos futuros dialéticos
- suas qualidades naturais
- triagens sucessivas
Perigos da dialética mal praticada ou reduzida a um simples jogo
Depois da prática da dialética, redescida na caverna e ocupação de postos públicos durante quinze anos, para os melhores, contemplação do Bem; depois do que, compartilhamento do tempo entre filosofia e comando político
Relembrar o ciclo completo
- até os 18 anos
- literatura
- música
- matemáticas elementares
- de 18 aos 20 anos
- treinamento físico
- treinamento militar
- 20 a 30 anos, depois da seleção
- ciclo completo das ciências matemáticas
- 30 a 35 anos, depois de outra seleção
- 35 a 50 anos
- serviço público
- depois dos 50 anos, para os melhores
- contemplação
- ação política
- O objetivo supremo da educação dos guardiões é de conduzi-los a conhecer o Bem; rejeição da concepção popular do Bem como prazer mais dificuldade a defini-lo.
A realização do Estado justo é possível se se pões na cabeça do Estado filósofos assim formados
Eggers Lan
LIBRO VII
517b Alegoría de la caverna
La caverna es el ámbito visible en que vivimos y el fuego en ella es el sol: afuera está el ámbito Inteligible, las Ideas, y el sol es la Idea del Bien. El arte de volver el alma desde las tinieblas hacia la luz es la educación.
Los gobernantes, una vez educados de ese modo, deben gobernar.
S22c Estudios del filósofo: I) aritmética
Para escapar al ámbito del devenir (génesis) y captar la esencia el guardián debe estudiar aritmética, que eleva el alma y la obliga a discurrir (dialégesthai) sobre los Números en sí.
526c 2) geometría plana
Aunque los geómetras hablan de ‘cuadrar’, ‘aplicar’, etc., como si sus discursos apuntaran a la praxis, la geometría se dirige al conocimiento de lo que es siempre.
528a 3) estereometría
El estudio del sólido en sí mismo ha sido emprendido hasta ahora débilmente; el Estado debe promoverlo.
528e 4) astronomía
No hay que ocuparse de ella con la vista, ni aunque se mire hacia arriba, sino con la inteligencia: los astros que se ven sólo sirven como ejemplos para el estudio de los que no se ven. en su velocidad, figura y relaciones verdaderas.
530d 5) armonía
Lo mismo en el caso de la teoría matemática de la música: a partir de los acordes que se oyen hay que elevarse al examen de los números armónicos y de los que no lo son, lo cual es útil para la búsqueda de lo Bello y lo Bueno.
531d La Dialéctica, estudio supremo
Los estudios anteriores sólo son un preludio a la dialéctica, que sólo pueden alcanzar los capaces de dar y recibir razón de la esencia. Tal como el prisionero llega al término de lo visible cuando puede ver el sol, el dialéctico arriba al término de lo inteligible cuando contempla la Idea del Bien. El método dialéctico es el único que marcha hasta ella cancelando los supuestos.
533e Retorno a la alegoría de la línea: ordenamiento epistemológico
El conocimiento relativo a las cuatro subsecciones son; ciencia (epistémé), pensamiento discursivo, creencia y conjetura; a estas dos en conjunto, opinión, y a las dos primeras en conjunto, inteligencia (nóesis). Esta se refiere a la esencia, y la opinión al devenir. Esencia: devenir: inteligencia: opinión, y a su vez ciencia: creencia pensamiento discursivo: conjetura.
534b Formación de los dialécticos
Estudiarán desde niños. A los veinte años se elegirá a los más inteligentes y durante diez años se les hará tener una visión en conjunto (sýnopsis) de lo que en forma dispersa estudiaron cuando niños. A los treinta años se seleccionará a los más capaces de prescindir de los sentidos y de marchar hacia lo que es en sí, y se les hará descender a la caverna para ejercitarse en todo tipo de trabajo. A los cincuenta se los forzará a contemplar la Idea del Bien, y a, tomándola como paradigma, alternarse durante el resto de sus vidas en el gobierno del Estado.
G.R.F.Ferrari
514a: The final analogy to explain the study of the good is that of (iii) the cave. Education ought to turn the eye of the soul away from the shadows with which it is surrounded in the cave of society and lead it to true understanding in the sunlit world above (518c). But philosophers who attain this understanding must be made to return to the cave and rule there (519d). – 521d: Socrates explains how it is the study of mathematics that will do the job of drawing the soul out of the cave. He analyses each branch of mathematics in turn: (i) arithmetic and number (522c); (ii) plane geometry (526c); (iii) solid geometry (528b); (iv) astronomy (528e); (v) harmonics (530d). – 531d: The culmination of the philosopher-king’s education is the study of dialectic, which brings him to understand the good. But Socrates cannot give Glaucon a clear idea of what dialectic is, or how it achieves its end. – 535a: Instead, they discuss what qualifications are necessary for such a course of study, and at what age the various studies should be undertaken (536d). Socrates concludes with a suggestion about the easiest way to bring Callipolis into being (541a).
Os fundamentos da álgebra só foram lançados no séc. III d. C., por Diofanto, numa obra intitulada, aliás, Aritmética, O nome e a notação que lhe é própria foram-lhe dados posteriormente pelos Árabes. ↩
O principal seria, conforme foi notado por F. M. Cornford (The Republic of Plato, p. 223), atribuir-lhe o sentido que tomou a partir de Hegel. ↩
R. L. Nettleship, Lectures on the Republic of Plato, p. 279, cita o passo dos Memoráveis (IV. 5.11-12) em que Xenofonte põe na boca de Sócrates a explicação de que o verbo provém da prática de os homens se encontrarem para deliberar «pondo de lado os assuntos que discutiam, segundo a sua espécie», que é «o que tomou os homens melhores, mais capazes de governar e de discorrer». ↩